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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Uma resposta à resposta à Katchanga !

O professor e autor Lenio Streck publicou um artigo na Internet muito interessante acerca da Teoria da Katchanga (clique aqui para acessar o artigo dele), que foi abordada num dos posts neste Blog (confira aqui o meu post).

Ele afirma que o artigo é uma resposta a artigos ("papers") entregues por alunos seus citando um artigo da Katchanga, que, possivelmente, deve ser o do colega George Marmelstein, cujo Blog é milhares de vezes mais visitado do que o meu (veja o post dele clicando aqui). Aliás, já existe uma outra resposta, feita pelo George Marmelstein, cuja leitura também é instigante.

De qualquer sorte,  tentarei analisar o artigo de Lenio, abstraindo, aqui, as citações, pois creio que o argumento vale pelo seu peso intrínseco, e não pela autoridade de quem o escreveu.

Também não abordarei a polêmica sobre quem foi o primeiro a falar da Teoria da Katchanga, pois acredito que, de fato, deva ter sido o Professor Warat (a quem não conheci pessoalmente, mas que é elogiado por todos que conheço que tiveram aulas com ele) e também porque nem eu e nem o George assumimos a autoria da, digamos, tese da Katchanga (risos).

O fato é que o Prof. Lenio argumenta, em resumo:

[a] a estória da Katchanga serve como metáfora para criticar a dogmática jurídica quando esta assume um caráter decisionismo voluntarista, isto é, quando defende a tese de que “a interpretação é um ato de vontade”;

[b] a crítica à dogmática é que ela “é um jogo de cartas marcadas”, pois ela mesmo pode reinventar as regras para decidir a questão da forma que melhor lhe convier, conforme “a vontade do poder” – fato este que seria algo “não-dito” e escondido dos participantes do jogo;

[c] neste contexto, haveria um papel perigoso da interpretação do direito e dos princípios;

[d] esta crítica ao decisionismo da dogmática jurídica transformou-se numa crítica ao ativismo judicial baseado na tese de que há várias interpretações constitucionais possíveis da literalidade da lei;

[e] existe um o papel criativo da hermenêutica quando da “leitura” de qualquer texto jurídico;

[f] a normatividade dos princípios também gera ambigüidades idênticas às que eram denunciadas pelas críticas à dogmática jurídica;

[g] a decisão que interpreta um texto jurídico depende não só deste texto, mas também de vários de fatores que ficam fora das análises estritas do fenômeno jurídico;

[h] a tarefa da democracia constitucional é “criar as condições para a extirpação de qualquer tipo de decisionismo”;

[i] esta limitação da atividade decisória deve ser feita a partir de uma Teoria da Decisão que se lastreie num contexto democrático de legitimação;

[j] as críticas atuais usando a “Teoria da Katchanga” limitam a crítica à “ponderação à brasileira” de forma superficial como uma crítica à utilização da teoria dos princípios no Brasil – por exemplo, o uso indevido do princípio da proporcionalidade para fundamentar uma escolha arbitrária;

[k] a crítica falha ao não perceber que “a ponderação à brasileira” é a Katchanga, porque isso não é uma peculiaridade daquela, mas sim presente “na própria teoria de Alexy e no elemento decisionista inerente ao seu procedimento ou fórmula da ponderação”;

[l] quem critica a Katchanga na ponderação tem que criticar também o livre convencimento do juiz, o instrumentalismo no processo civil, o sistema inquisitivo no processo penal e outros.


Nada tenho a opor quanto aos itens [a] até [g] e [i].

As demais, porém, penso que podem ser reformuladas.

Com relação à tese [h], esclareça-se, de início, que ela não é um juízo de fato, mas sim um juízo de valor, isto é, segundo Lenio, na visão dele, todo e qualquer decisionismo tem que ser extirpado. Em outras palavras, é uma escolha dele querer que toda a discricionariedade ou liberdade de julgar sejam excluídas e que a decisão judicial não seja um ato de vontade.

A questão que resta é: isso é possível ? Será que a escolha entre possíveis interpretações não envolve um certo grau de liberdade ? Poderia um sistema ser tão perfeito que eliminasse toda e qualquer escolha valorativa numa decisão judicial ? Se isso fosse possível, o elemento humano não seria perdido e trocado por um computador ? O Direito contenta-se com respostas totalmente previstas num sistema fechado racional ? O Juiz voltaria a ser apenas a "boca da lei" ? Não há espaço para Emoção a partir dos Valores, como a Justiça ? [para abordar a questão da necessidade de estudar Justiça, clique aqui; para um início sobre este conceito de justiça clique aqui e aqui também]

A reformulação que proponho ao item [h] é que a tarefa constitucional – que já era a tarefa do Estado Legalista – é a de limitar ou restringir a um certo limite razoável a esfera de escolhas possíveis.

Existe, sempre, uma certa discricionariedade em qualquer ato administrativo, inclusive nos atos políticos dos juízes (sim, política no sentido de definir ações do Estado, seja no plano geral e abstrato da lei, seja no plano particular e concretizado num processo). A discricionariedade possível aqui é aquela que Pontes de Miranda uma vez escreveu como a diferença entre o ato administrativo vinculado e o ato discricionário, em que ambos seriam como peixes dentro de um aquário, no qual o peixe pode ir para cima, baixo, direita ou esquerda, mas sempre dentro dos limites, variando apenas o tamanho deste aquário – infelizmente, li este exemplo há muitos anos atrás numa biblioteca durante um intervalo de aula e nunca mais achei a referência bibliográfica desta passagem magistral. O tema da discricionariedade judicial é interessante, e parece-me correta a abordagem dada por Dworkin, diferindo uma discricionariedade forte de uma fraca (fica para um post futuro).

Quanto a [j] e [k], creio que Lenio está equivocado, pois a crítica – especialmente a que fiz neste blog e em escritos de cunho mais formal e acadêmico – são não apenas à ponderação à brasileira (que merece crítica), mas também ao fenômeno jurídico como um todo, incluindo, aqui, o neoconstitucionalismo fundado na normatividade dos princípios.

Com relação a [l], a reformulação que acredito correta é a mesma feita ao item [h], isto é, creio [1] não ser possível reduzir e eliminar toda discricionariedade do ato judicial (como seria impossível eliminar o sentido de valor de qualquer ato humano) e [2] ainda que fosse possível, tal eliminação não seria desejável (conveniente e oportuna), pois o Direito não é apenas Razão, mas também Emoção, ligada, aqui, ao valor Justiça, por exemplo.

Porém, além das objeções [1] e [2] acima, penso que há outro problema ainda maior: [3] o de que não é oferecida uma visão alternativa e prática (aqui no sentido de que possa ser usada tanto pelo juiz no caso concreto para resolver um processo dizendo quem perdeu ou ganhou a ação, quanto no plano teórico dos que estudarão o fenômeno jurídico para avaliar como correta ou incorreta a decisão tomada ou a norma criada).

A tese que defendi em alguns trabalhos é, em resumo, a de que o neoconstitucionalismo ainda é insuficiente para lidar com o fenômeno jurídico, embora seja mais adequado do que o modelo positivista legalista clássico; por isso, o modelo pós-positivista pode e deve ser aprimorado.  

Isso porque ele padeceria das seguintes objeções que levantei e que agora resumo (e muito) a partir dos textos publicados, cujos originais, com a fundamentação teórica e citações bibliográficas pertinentes podem ser encontrados em “Desatando os nós do neoconstitucionalismo brasileiro”, parte do livro HIROSE, Tadaaqui; GEBRAN NETO, João Pedro.. (Org.). Curso Modular de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito Editorial, 2010, v. , p. 111-162; ou, a versão anterior, publicada em Sequência (UFSC), v. 58, p. 185-232, 2009, revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC (agora disponível na Internet neste link).

São estas as objeções:

[4] a base filosófica habermasiana do discurso ideal parte de uma igualdade formal entre iguais que [4.1] não se reproduz no mundo real, repleto de desigualdades materiais, e [4.2] parte dos pressupostos de que as partes querem se comunicar e chegar a um acordo final, inexistentes no mundo real em que há [4.2.1] conflitos de interesses que levam ao uso estratégico dos argumentos, bem como [4.2.2] requer a intervenção de um terceiro – Estado-juiz – para encerrar, em algum momento, a discussão;

[5] ao fazer um corte epistemológico para estudar apenas “o que foi dito pelo juiz ou pelas partes”, o neoconstitucionalismo oculta os fatores políticos, psicológicos e morais subjacentes, que, embora difíceis de serem apurados, são elementos importantes para entender o fenômeno jurídico; afinal, se a teoria jurídica quiser apenas descrever, ela não pode deixar de apontar os motivos que levaram à decisão, sob pena de ficar superficial e restrita àquilo que o sujeito decidir apontar como relevante; se a finalidade for prescritiva, ela também não pode desconsiderar as razões que ao julgamento, sob pena de muito pouco poder sugerir ou determinar como alternativa de solução; por fim, se ela for crítica, então muito mais necessária se faz a explicitação das condições escondidas, sob pena de se tornar inútil por apontar falhas naquilo que é aparente e não naquilo que é o determinante;

[6] a alienação intelectual dos juristas, que acabam esquecendo que as normas são produtos do homem e do contexto político e social de sua criação, e não algo inscrito em tábua de pedra por algum ser distante e que deve ser venerada como algo imutável ou divino;

[7] a existência de um elemento subjetivo valorativo que não pode ser excluído de qualquer juízo de ponderação, ainda que este aparente ser objetivo; afinal, dizer que o manifestante em greve de fome deve ser alimentado após cair inconsciente é dizer que o bem vida tem mais valor do que a vontade daquele e do seu direito de resistência e/ou livre expressão (não se quer, por óbvio, dizer que ela tem, ou não, mais valor, mas sim afirmar que isso é admitir que o juiz ou intérprete decidirá conforme determinados valores e que é impossível excluir estas escolhas valorativas de todas as decisões judiciais);

[8] as práticas jurídicas que eram da dogmática jurídica clássica continuam a assombrar o neoconstitucionalismo brasileiro, como [8.1] a ausência de metacritérios, que permite escolher o método de interpretação ou o princípio mais adequado a justificar a escolha previamente feita; [8.2] o uso de expressões ambíguas como “dignidade da pessoa humana” ou “princípio republicano” como forma de obter a adesão do leitor; [8.3] a adoção em “fatias” da doutrina dos princípios de Dworkin etc.

[9] a necessidade de reconhecer a interdependência entre Direito e Política, conceituando o Direito como uma prática moral e política de resolução de conflitos que nas sociedades ocidentais contemporâneas se dá mediante argumentação;

[10] o fato de que o Direito reproduz tanto as relações de poder internas às instituições envolvidas na prática jurídica quanto as existentes na Sociedade, que devem ser examinadas não apenas pelo prisma da técnica jurídica, mas também pelos demais saberes sociais como Antropologia, Sociologia etc.

Por isso, tendo em vista estas considerações, propus, dentro das minhas limitações intelectuais, que o modelo insuficiente do neoconstitucionalismo fosse trocado ou aprimorado por outro que analise o fenômeno jurídico a partir de uma extensão do sistema proposto por Atienza, com a inclusão de uma quarta camada referente ao Poder.

Na obra “El derecho como argumentación”, Atienza elabora uma Teoria argumentativa do Direito, estruturando-a a partir de três planos (formal, material e o pragmático), aparentemente influenciado pela Filosofia da Linguagem e seus três campos (Sintaxe, Semântica e Pragmática). [remeto o leitor à obra dele, ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Ariel: Barcelona, 2006], fornecendo instrumental teórico para análise mais aprofundada do Jurídico.



Comparativo das Concepções de Atienza
[ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación, p. 80-94/286]
Concepção
Formal
Concepção
Material
Concepção
Pragmática
ObjetoRegras lógicas para inferências a partir das premissas dadasConteúdo das premissasA aceitação das premissas
ÊnfaseLógica dedutiva (esquema formal que permite justificar os passos tomados a partir das premissas para chegar à conclusão)Métodos que permitam verificar a verdade ou correção das premissas fáticas ou a justificação de razões apresentadas[1] A Dialética (esquemas procedimentais que regem o debate); e
[2] Retórica (regras que permitem convencer)
Contribuição[1] esquemas e formas de argumentação que ajudam a organizar os argumentos;
[2] contextualização dos argumentos por fornecerem uma linguagem formal que traduz a linguagem natural; e
[3] critérios para controle dos argumentos
[1] aferição das razões apresentadas no contexto das práticas discursivas (Ética, Política e Direito)[1] Visualização da estrutura (como os argumentos parciais se relacionam entre si e com a conclusão);
[2] Visualização do fluxo dos seus atos de fala (afirmações, suposições, perguntas e outros);
 [3] Visualização dos elementos retóricos (porque utilizar um argumento e não outro)

A partir deste modelo, penso que seria possível a criação de uma quarta camada ou concepção, na qual os enunciados são investigados a partir da sua relação com o Poder, usando métodos de outras ciências (Economia, Ciência Política, Sociologia, Antropologia) ou saberes (Filosofia e Teorias da Justiça), incorporando conteúdos de natureza moral e política para que possa fornecer critérios de correção ou escolha da decisão.

Ou seja, é necessário incluir teorias da obrigação política, eqüidade, discricionariedade e razoabilidade, dentre outros, pois a racionalidade prática, por si só, não consegue indicar qual delas é a mais correta, mas apenas que elas são racionalmente adequadas.

Enfim, há mais convergências do que divergências no tema da Katchanga e neste diálogo intelectual espera-se que surjam propostas teóricas e práticas de aprimoramento da vida jurídica para adequá-la ao ideal de legitimidade democrática e fugir daquilo que o filósofo e jurista nicaragüense Alejandro Caldera diz ser comum na América Latina: dizer o que não se faz e fazer o que não se diz. A perspectiva jurídica não consegue, por si só, produzir soluções práticas, especialmente quando passa a focar a Constituição e a prática jurídica como objetos alienados do seus partícipes, ignorando o jogo de poder que lhes constrói e que direciona a aplicação cotidiana. O estudo do Direito deve explicitar aquilo que não foi dito e examiná-lo, sob pena de, não o fazendo, esconder a arbitrariedade, agora sob o nome de “normatividade dos princípios”.

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