Postagens populares

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Poder ou dever de desagradar ?


A recente e acalorada discussão sobre a decisão do STF acerca dos “poderes” do CNJ tinha uma questão de fundo que foi pouco debatida. Não se trata de examinar o mérito da decisão do STF, mas é interessante notar que, ao elogiar o “placar final”, a imprensa e a Sociedade tratavam o tema como se houvesse a necessidade da Corte decidir de acordo com uma suposta vontade pública e deixaram de questionar se cabe ao Judiciário e, mais especificamente, ao STF, atender o “clamor popular” ? Ele pode desagradar o público ? Suas decisões tem que ser baseadas na popularidade ou no Direito ? Há espaço para um Direito “impopular” ? A legitimidade do STF funda-se na aceitação do povo ?

Ao tratar do tema, os poucos que conseguem refletir de forma não passional costumam citar os clássicos exemplos de decisões equivocadas baseadas no clamor social, como a de Pôncio Pilatos que, premido pela multidão, lavou as mãos, soltou Barrabás e condenou Cristo. Ou, ainda, na realidade brasileira em tempos mais próximos, os famosos casos da “Escola Base” e do “Escândalo das Bicicletas do Ministro Alceni Guerra”, que foram condenados pela imprensa, linchados moralmente, e, depois, absolvidos pela clareza das provas que indicavam suas inocências.

A questão é mais profunda e vai além da possibilidade de erro no julgamento popular ou midiático que gera o dever de resguardar os acusados até o final do processo mesmo contra a pressão pública.

Existe, sim, um poder, quase dever, do Judiciário de não se preocupar com o clamor social, e, se for o caso, desagradar a quem for para fazer cumprir sua função: decidir os conflitos que não foram solucionados pelos envolvidos.

A análise pode ser feita sob dois planos: o dos processos/ações individuais (com a conotação mais jurídica do conflito) e o dos processos coletivos (com um lado político mais acentuado – sobre o tema da Política confira-se post anterior questionando se o STF é ou não um Tribunal Político. ).

Nos processos comuns, ninguém vai ao Judiciário por livre e espontânea vontade. Autor e réu não vão ao Juiz para tomar um cafezinho, contar piada e dizer como suas vidas são perfeitas.

Ao contrário, o dia a dia forense é marcado pelo conflito de interesses, pela briga entre vizinhos, pelos relacionamentos amorosos desfeitos num Divórcio, pelo ressentimento do empregado e do patrão que entendem, cada um, que o outro quer lucrar às suas custas, etc.

Nestes casos, se não for possível a Conciliação, o Juiz terá que decidir. Terá que desagradar uma das partes. Aquele que vencer, dirá que seu Advogado foi bom e que o juiz só reconheceu a sua razão. O que perder, dirá que o Juiz errou e, se estiver convencido de que tem razão, lançará dúvida sobre a capacidade e idoneidade do magistrado, não admitindo que seu direito não era concreto.


Nestas questões, qualquer que seja a decisão final do Judiciário, ela desagradará alguém. Pode ser um jornalista que teve sua matéria censurada por conta de algum direito individual à honra (ou o seu adversário: alguém que buscou restringir a divulgação de fato de sua intimidade que não teve este direito reconhecido). Pode ser um candidato eleito que teve sua posse suspensa por conta de algum ato de improbidade (ou pode ser seu adversário que julgava corrupto o eleito e não conseguiu evitar a posse). Pode ser o policial que usou meios não usuais para provar a tentativa de corrupção de um empresário e teve a prova indeferida (ou pode ser o banqueiro que se julga perseguido e entende que o juiz está mancomunado com os policiais ao deferir a prova). Enfim, toda questão tem dois lados colidentes e raramente será possível agradar a todos.


Esta vulnerabilidade é ainda maior nos processos criminais, especialmente quando envolvem crimes de colarinho branco  (daqueles que têm condições financeiras inclusive de promover a perseguição individual contra os juízes, promotores e policiais) e do crime organizado (o homicídio da juíza carioca é um caso evidente).

Isso não significa que os juízes não erram. Claro que erram. Faz parte da condição humana errar. Para isso, existem os recursos (aliás, no Brasil, existem recursos até demais, ao contrário do que ocorre em todos os outros países). Os tribunais de segunda instância, os superiores e ao final o STF irão confirmar ou não a decisão do primeiro juiz.

Porém, uma decisão terá de ser dada e em algum momento ela terá de ser final. Doa a quem doer.

Nos processos coletivos a questão é ainda mais profunda.

O Brasil é uma Sociedade desigual. Existem conflitos políticos, sociais e econômicos coletivos que não são resolvidos sem dor, sem desagradar e muito menos facilmente.

O Legislativo e o Executivo já perceberam isso há muito tempo.

Um dos exemplos mais claros disso é relatado no caso da Constituinte e do Descanso Semanal Remunerado. O congresso era dividido em dois grupos distintos e de igual tamanho: o “centrão” e as “esquerdas”, estes queriam o descanso obrigatoriamente aos domingos, aqueles, não. Ninguém cedia. Em determinado momento o conflito foi resolvido dizendo-se que o descanso semanal seria “preferencialmente” aos Domingos.

O resultado ? Coube ao Judiciário resolver o conflito em inúmeras ações trabalhistas, incluindo dissídios coletivos e, nos casos mais extremados e passionais, em interditos possessórios deflagrados em razão de greves. Nestes casos, alguém sempre ficou desagradado, e não foi pelo Legislativo, mas pelo Judiciário.

A questão ambiental também indica isso. Há décadas que os Poderes Executivos Federal, Estadual e Municipal podem demolir construções irregulares localizadas em áreas de proteção ou feitas em desacordo com a legislação urbanística. Não o fazem.

Se existirem estatísticas sobre o tema, com certeza apontarão que o número de ações de demolição ou desocupação é milhares de vezes superior ao número de procedimentos administrativos decorrentes de ação dos governos ou suas autarquias.

Curiosamente, acaba “sobrando” para o Judiciário dar as ordens, provocado, em regra, pelo Ministério Público, órgãos cuja legitimidade não decorre do voto.

Nos anos recentes, o STF tem sido instado a definir as questões políticas e morais mais importantes e polêmicas: união homoafetiva, lei de imprensa, a forma de regulamentação das reservas indígenas, a possibilidade de pesquisa com células embrionárias, a fidelidade partidária, a extensão do direito à saúde e o fornecimento de medicamentos, a lei da "ficha limpa", as cotas raciais etc.

Isso porque a dinâmica do Estado de Bem Estar Social e, mais especificamente no Brasil, o Estado democrático de Direito desenhado pela Constituição de 1988, com diversas promessas e objetivos dirigentes, produziu uma crescente judicialização da política e das relações sociais, trazendo, cada vez mais, ao Judiciário, a atribuição de decidir questões polêmicas de difícil solução harmônica.

Além disso, há aspectos do Direito Constitucional que são feitos justamente para serem opostos contra a maioria: os direitos fundamentais e as cláusulas pétreas. A história demonstrou o perigo de maiorias temporárias, especialmente quando conduzidas por discursos fundamentalistas, moralistas ou de medo (veja-se os casos da Alemanha Nazista, a ditadura Brasileira pós AI-5, e, mais recentemente, a Era Bush nos E.U.A., que, no auge, chegaram a renomear as batatas-fritas para trocar o "french fries" por "freedom fries", elegendo a tortura como meio de investigação). Para uma análise mais aprofundada sobre estes, recomendo os excelentes posts do George Marmelstein sobre democracia e cláusulas pétreas e o sobre a distinção entre a adesão política e adesão ética aos direitos fundamentais.

E, ainda no plano do Direito Constitucional, o Poder Judiciário irá chocar-se contra os demais poderes continuamente. É esta a base do sistema de tripartição de poderes: cada poder fiscaliza e controla os demais. Para evitar um absolutismo - de qualquer um dos poderes - há a vigilância recíproca. A previsão de que os poderes são harmônicos entre si (art. 2o, da Constituição) é, na prática, traduzida por um choque de vontades. Quando o Executivo quer ir além do que manda a lei determinada pelo Legislativo, alguém do Judiciário terá que dizer não, avisando: "você passou do limite". Se de um lado o Executivo indica os membros do STF, que serão sabatinados pelo Legislativo, é este mesmo STF quem irá, posteriormente, dar os limites àqueles. E, como é próprio da natureza humana, ninguém gosta de ser contrariado, de não poder fazer uma obra ou uma licitação além do que lei determina. Este controle desagrada a quem está no poder, mas este choque é necessário num Estado de Direito. O governante não tem mais os poderes absolutos que os reis tinham, mas muitas vezes esquecem-se disso e precisam ser lembrados. Esta lembrança nem sempre é agradável.

Tudo isso é inevitável e faz parte do sistema político de qualquer nação democrática atual.

Há, ainda, outro plano de análise: a tradução das decisões e do papel do Judiciário às partes e à Sociedade, tanto na esfera do seu “marketing”, quanto no caso individualmente decidido.

Os juízes tem a tradição histórica de não se expor. De não divulgar suas idéias. De não dar caráter midiático às suas decisões. As causas são várias e vão desde a vedação legal de emitir opinião sobre processos em andamento (art. 36, III, da LOMAN) até a necessidade de demonstrar imparcialidade (ou neutralidade) diante dos processos que lhe são trazidos. Tudo isso leva a um perfil institucional de evitar a auto-exposição das Cortes e de seus Membros.

Por outro lado, o Judiciário tem restrições orçamentárias de gasto com publicidade que outros órgãos, inseridos no Executivo e no Legislativo, não tem. Assim é que, por exemplo, outros órgãos buscam a publicidade, com certeza auto-elogiando-se, ao contrário do Judiciário. Veja-se: matéria sobre a "visibilidade" da AGU

No plano individual da tradução de seus atos e decisões, o Judiciário “peca” ao usar linguagem técnica e formal na sua comunicação com as partes [o termo “pecar” está entre aspas por uma singela razão: a decisão judicial faz parte de um sistema formal – o processo – e de uma linguagem técnica – a jurídica -, pois sua função não é promover a visão marqueteira do Juiz, e sim decidir um caso trazido. Portanto, ela cumpre uma função e descumpre outra].

A “tradução” da decisão para a imprensa ou para as partes envolvidas acaba sendo feita por um terceiro: o advogado. Este, por sua vez, é interessado direto na causa. Ainda que inconscientemente e sem a intenção, por ser interessado e por conta do ruído inerente a qualquer processo de comunicação, a tradução que ele fará não será totalmente fiel aos fatos. Eventuais falhas suas poderão ser omitidas à parte. Qualidades positivas poderão ser apontadas como resultado de seu trabalho, e não como qualidades do julgador. Isso também é natural e próprio do sistema jurídico de qualquer país do mundo, repita-se. Porém, também gera um desgaste na imagem do Juiz e do Judiciário que não é necessariamente real.

Por fim, uma última questão: se houvesse esta subordinação da legitimidade do STF à vontade popular, ela seria por um prazo ou dependeria de ser renovada a cada decisão ? Isto é: o uma decisão "agradável" há algum tempo (exemplo: questão da ficha limpa) seria anulada por uma decisão "desagradável" posterior ? Curiosamente, alguns colunistas e editoriais de periódicos davam como certa a "crise" ou o "fim da credibilidade" do STF se ele desse uma decisão contrária ao "anseio popular" no caso do CNJ. Isso significa que as decisões anteriores - supostamente afins com este mesmo "anseio popular" -, tais como a questão da liberdade de imprensa e não recepção da vetusta lei, seriam apagadas. A cada decisão, o STF teria sua legitimidade posta à prova ? É possível imaginar a sobrevida de uma instituição que necessariamente tem que desagradar interesses se a cada decisão ela fosse colocada à prova, esquecendo-se os méritos das anteriores ? E mais: os ministros sendo classificados como "vilões" ou "mocinhos", numa dicotomia preta e branca, por cada voto seu ?

Neste passo, a conclusão é que, quanto mais o Judiciário participar da vida da Sociedade e mais esta buscar nele a solução para problemas de alta litigiosidade, maior será o desgaste da instituição e maior será a crítica contra ele.

Buscar uma solução que agrade a gregos e troianos é algo impossível e desvirtuaria a missão e função principal do Juiz, que é, justamente, a de aplicar as regras do jogo, desenhadas pelos jogadores antes dos fatos, a fim de resolver, ainda que temporariamente, o conflito social trazido. A sua medida de avaliação não pode ser o atendimento à vontade popular (se é que é possível dizer qual é, de fato, a vontade popular), mas sim o atendimento às regras do jogo e o grau de eficiência na solução dos conflitos.

A legitimidade não pode ser, portanto, a popularidade do Judiciário. Por mais que isso possa ser impopular.

Nenhum comentário:

Postar um comentário