1. Introdução.
Um dos assuntos que periodicamente voltam à discussão na
mídia é a chamada “Reforma Tributária”. Os impostos (em sentido amplo) atingem
toda a população. A escolha sobre a forma de tributar define várias
circunstâncias da vida econômica das Nações. Porém, tirando os juristas (em
especial os tributaristas) e parcela dos economistas e governantes, poucos têm a
exata noção de o que significa Sistema Tributário ou como se estruturam, constitucionalmente,
os diversos tipos de tributos e nem a diferença entre Imposto, Taxa, Empréstimo
Compulsório, CIDE, Contribuição Previdenciária e outros.
O presente texto é destinado ao leigo em Direito (ou ao
iniciante), e não o Jurista. A intenção é justamente explicar, sem usar o
“juridiquês”, tanto quanto possível, as noções elementares do Direito
Tributário para os médicos, dentistas, engenheiros, administradores e outros a
fim de que, cada vez mais, participem do processo de discussão democrático.
2. Conceito de Direito Tributário.
A primeira noção necessária é justamente o conceito de Direito
tributário. Ele é o ramo do Direito que regula a atividade financeira do Estado
(em sentido amplo, abrangendo os governos Federal, Estadual e Municipal) ligada
as normas que instituem, arrecadam e fiscalizam tributos.
3. Quem pode tributar ? Como ele pode criar um Tributo ?
O Estado, no exercício de sua soberania, tributa para suprir
seus gastos. Todavia, a tributação não é simples relação de poder, mas sim uma relação
jurídica, submetida às normas. Isso porque, embora nas monarquias absolutistas
fosse possível ao Rei exigir tributos conforme a sua própria vontade, o advento
das restrições ao poder, tais como a “Magna Charta” de 1215 (que antecedeu as
modernas Constituições), transformou o “governo dos homens” em “governo das
leis”. É importante notar que um dos fatores que implicou a revolta dos nobres
feudais contra o rei inglês, e consequentemente a imposição da “Magna Charta”,
foi justamente a revolta contra a tributação desmedida e sem critérios.
Como os governantes não têm mais poderes ilimitados, mas
somente aqueles previstos pela Constituição e pelas Leis do país, só é possível
cobrar tributos que estejam previstos no ordenamento.
O sistema brasileiro prevê duas etapas distintas: na
primeira, a Constituição autoriza as esferas Federal, Estadual e Municipal a,
querendo, instituir tributos por meio de leis (art. 150, III), que devem
observar, logicamente, a Constituição. Esta, por sua vez, estabelece diversas
regras, tais como a que proíbe a União de tributar a renda dos demais entes da
Federação (art. 151, II) ou a que proíbe cobrar impostos sobre os templos de
qualquer culto (art. 150, VI, “b”). Para evitar que um mesmo ente tribute o
mesmo fato, a Constituição enumera quais Tributos podem ser criados para cada
um dos níveis da Federação. Assim, a União (ente Federal) não pode cobrar
imposto sobre a propriedade urbana (IPTU), pois este é reservado para os
Municípios (art. 156, I).
Um tipo especial de regras constitucionais é a Imunidade
tributária, que, atendendo a algum tipo de valor social ou político, suprime do
Estado o poder de tributar determinados bens ou pessoas. É uma espécie de “competência
negativa” estabelecida pela Constituição, tornando intocáveis objetos ou
sujeitos para ampliar a liberdade em face do Estado. Assim é que, por exemplo,
para proteger a liberdade de expressão e divulgação de idéias, a Constituição
prevê que são imunes os livros, jornais, periódicos e papel destinado à
impressão (art. 150, VI, “d”). Ou para proteger a liberdade de crença, a
Constituição protege os templos de qualquer culto têm imunidade de impostos sobre
o patrimônio, renda ou serviços ligados à sua finalidade (art. 150, VI, “b”, e
§4º).
Além disso, para tentar uniformizar o sistema nacional e
evitar confusões entre os vários entes, as leis federais, estaduais ou
municipais que regulamentam os tributos criados também devem observar as regras
definidas em Lei Complementar (art. 149), no caso, Código Tributário Nacional
(CTN). Por exemplo, a União não dizer que um imóvel no centro de uma cidade é
rural para tributá-lo, pois, embora a Constituição autorize criar um Imposto
sobre Propriedades Rurais (art. 153, VI), o CTN define o quê é propriedade
urbana (art. 32, §1º, CTN) e impede que ela seja usada como fato para aquele
tributo federal (art. 29, CTN). Assim, a lei que organiza um determinado
imposto ou taxa não pode chamar de redondo aquilo que é quadrado, e vice-versa
(para o tema, vide meu post anterior sobre os "círculos quadrados".).
4. Conceito de Tributo.
Tudo isso leva a um segundo conceito: Tributo. O CTN traz
uma definição interessante (o que não é normal de ocorrer nas leis, que, por
técnica legislativa, deixam os conceitos para a Doutrina): “Tributo é toda prestação pecuniária
compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua
sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade
administrativa plenamente vinculada” (art. 3º, CTN).
Trocando em miúdos: Tributo é todo pagamento exigido pelo
Estado que não decorre de um acordo voluntário (como um contrato
administrativo) e nem de uma punição (multa por infração à lei penal, por
exemplo).
Na prática isso significa que, a partir das autorizações
previstas na Constituição, o legislador pode examinar os fatos do dia a dia e,
sobre um determinado fenômeno econômico, elaborar uma lei para exigir uma
parcela daquele fato econômico para o Estado, a título de Tributo.
5. Tipos de tributos.
Estes Tributos podem ser agrupados de várias formas. Há, na
literatura, diversas classificações. O CTN prevê uma, classificando-os em impostos,
taxas e contribuições de melhoria (art. 5º, CTN), mas, como ele é de 1966 e
inferior hierarquicamente à Constituição de 1988, há várias espécies de
Tributos com regimes jurídicos diferentes destes (por regime jurídico
entenda-se o conjunto de regras e princípios que definem a vida e a morte dos
direitos e deveres ligados àquele tributo).
Uma das classificações mais completas arrola: (a) Impostos,
(a.1) Nominados, (a.2) Residuais (art. 154, I) e (a.3) Extraordinários de
guerra; (b) Taxas, do (b.1) poder de polícia, (b.2) serviços públicos
específicos e divisíveis e de (b.3) uso de via conservada pelo poder público;
(c) Contribuições de melhoria; (d) Contribuições Especiais; que podem ser (d.1)
Sociais, (d.1.1) gerais (art. 149, 1ª parte), da (d.1.2) Seguridade Social
(art. 195, I, II e III) e (d.1.3) Seguridade Social residuais (art. 195, §4º)
ou (d.1.4) Previdência e Assistência dos servidores públicos; além das
contribuições (d.2) intervenção no domínio econômico, de (d.3) interesse das
categorias profissionais ou de (d.4) custeio de serviço de iluminação pública;
e, ainda, os (e) empréstimos compulsórios (e.1) extraordinários de calamidade
ou guerra; e os de (e.2) investimento.
De qualquer forma, há diversas regras constitucionais e
legais que organizam estes tributos, tais como a que proíbe a cobrança de taxa
sobre a mesma base de cálculo de um imposto (art. 145, §2º, Constituição), por
exemplo.
6. “Fato Gerador”, “Obrigação Tributária” e “Hipótese de Incidência”.
É impossível tratar de todos eles, com todas as suas nuances,
neste breve espaço, mas os três mais comuns (Impostos, Taxas e Contribuições
Sociais) podem ser resumidos a partir de um conceito único, fundamental e importantíssimo
para o Direito Tributário: o “Fato Gerador”.
Diz o CTN que o fato gerador do pagamento de tributos
(obrigação principal) é “a situação
definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência” (art. 114,
do CTN). Em outras palavras, a lei
deverá descrever claramente qual a situação econômica que gera o dever de
pagar: o Fato Gerador.
Porém, apenas isso não é suficiente. É necessário que a lei
que cria um tributo defina todos os aspectos do fato econômico que determinam o
pagamento, ou seja, quem deve pagar, a quem pagar, qual o motivo (situação
fática que gera o dever de pagar), quanto deve pagar etc. Um dos elementos
importantes é justamente a “Base de Cálculo”, que é a valoração (medida) numérica que representa
a expressão econômica do fato gerador e que deve ser um elemento que tenha
relação íntima com aquele, sob pena de se desnaturar o tributo. Na terminologia
jurídica, este conjunto de atributos é chamado de “Hipótese de Incidência”,
isto é, a descrição daquela situação que, na hipótese de ocorrer, fará a lei
tributária incidir para nascer uma obrigação tributária. Esta obrigação pode
ser a principal (pagar) ou acessória (manter os livros fiscais em dia, por
exemplo) – artigos 114 e 115 do CTN.
7. Impostos, Taxas e Contribuições Sociais.
Os exemplos de tributos e regras são vários e não seria
possível condensá-los num texto curto e destinado aos não juristas, mas voltando
à questão da classificação dos tributos, a grande divisão que existe é entre os
que tem o fato gerador vinculado a alguma ação do Estado em relação ao
contribuinte e aqueles que não tem esta vinculação.
Quando o Tributo decorre de uma situação independente de
qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte, temos o Imposto
(art. 16, CTN), ou seja, o fato gerador do imposto não tem nada a ver com algum
serviço ou ação do Governo em relação ao contribuinte, como, por exemplo, no
Imposto de Renda, que decorre, dentre outros, do simples fato de a pessoa que
trabalhou ou obteve rendimento ter, com isso, aumentado a sua disponibilidade
econômica (art. 43, I, CTN).
Isso significa que o todo o volume de recursos arrecadado
com os impostos ingressa no orçamento público para custear os serviços gerais
do Estado independente de qualquer ligação com aquelas atividades tributadas.
Por isso, ao contrário do que pensa “o senso comum”, é
irrelevante que seja mal prestado um serviço público ligado, ainda que
indiretamente, ao fato econômico gerador do imposto. Por exemplo: o fato de
pagar o IPVA pela propriedade de um automóvel não garante nenhum retorno nas
estradas que serão usadas com aquele, pois a renda deste Imposto entra no caixa
geral do Estado e pode ir para outro destino, como o pagamento de salários dos
professores da rede pública.
Por outro lado, as Taxas são o pagamento devido pelo
contribuinte por conta de serviços públicos prestados (ou postos à disposição)
ou por conta do poder de polícia (art. 145, II, Constituição). Porém, aqui,
quando se fala em poder de polícia, não se está referindo à Polícia Civil ou
Militar (sentido leigo da palavra), mas sim o poder de polícia em sentido
jurídico, ou seja, “atividade da
administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou
liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse
público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina
da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de
concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao
respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos” (art. 78,
CTN). Ou seja, no caso das Taxas, ou ela
é cobrada por algum serviço específico posto à disposição do contribuinte, ou
ele decorre de algum tipo de fiscalização do Estado sobre uma atividade.
Um terceiro tributo importante cuja participação na
arrecadação tem aumentado ano a ano é Contribuição Especial. As contribuições
especiais são tributos com finalidade constitucionalmente definida, como, por
exemplo, a manutenção de um sistema de previdência social pública. Há autores
que chamam de contribuições especiais e há quem chame de contribuições sociais,
mas o importante é que elas diferem dos impostos e das taxas justamente pela
destinação específica, embora tenham, ao mesmo tempo, similaridades com os
impostos e as taxas.
As contribuições especiais podem ser subdivididas conforme a
natureza da sua finalidade em [a] Contribuições sociais gerais (como as do
Sistema “S” – SESI, SENAI, SESC – e o Salário-educação); [b] Contribuições para
a seguridade social (exemplo: Contribuição sobre Folha de salários; FINSOCIAL;
COFINS; CSLL); [c] Contribuições para intervenção no domínio econômico; e [d]
Contribuições no interesse de categoria profissional (Ex: as devidas para
órgãos de conselhos de fiscalização e a contribuição sindical prevista no art.
8º, IV, 2ª parte, da Constituição, com art. 578, da CLT).
O interessante destas Contribuições é que elas tem um regime
misto entre as taxas e os impostos, pois, se de um lado os seus fatos geradores
muitas vezes não guardem ligação com uma atividade específica (uma empresa, que
recolhe contribuição sobre o lucro para o sistema de Previdência não irá se
aposentar, por óbvio), de outro, a sua destinação final está ligada a algum
tipo de serviço específico.
Além disso, o crescimento exponencial da importância destas
contribuições no bolo geral de arrecadação pode ser explicado por vários
fatores, dentre eles o fato de a Constituição prever a possibilidade de
cobrança de Contribuições sobre um grande número de fatos econômicos, inclusive
os que já são tributados pelos impostos, e o entendimento jurisprudencial que o
desvio da verba para outra destinação é questão administrativa-orçamentária que
não afeta a validade da contribuição arrecadada.
8. Como podem tributar ?
Não adianta toda essa estrutura jurídica para definir e
limitar os tributos se não houver um procedimento para exigi-los, uma vez que
não é racional esperar que todos paguem espontaneamente – e, mesmo se os
contribuintes quisessem pagar, teriam que saber qual o valor devido.
E mais: como o Tributo envolve uma atividade do Estado, este
não pode fazer nada que não estiver estritamente previsto para que ele faça,
sob pena de configurar o chamado “desvio” ou “excesso de poder”.
Ocorrido o fato que gera o dever de pagar – por exemplo:
adquirir renda –, nasce a chamada “obrigação tributária”, que nada mais é do
que a relação jurídica de direito público entre o sujeito que pode cobrar (Estado)
e o sujeito que deve pagar.
Porém, embora já exista a relação, ela não é líquida e nem
exigível, sendo necessário que o Estado realize um procedimento chamado
“lançamento tributário” para calcular o valor devido e informar quando, quem e
como pagá-lo. O CTN define o Lançamento como “procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato
gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular
o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso,
propor a aplicação da penalidade cabível” (art. 142, CTN).
Conforme a participação do contribuinte no ato, existem
várias formas de realizar o lançamento: [1] o direto ou “de ofício”, no qual a
autoridade realiza todos os atos; [2] Misto ou por declaração, em que
particular declara certas informações para a autoridade administrativa e esta,
num segundo momento, completa e efetua o lançamento (art. 147, CTN); e, por
fim, o [3] auto-lançamento ou “lançamento por homologação”, cada vez mais
comum, no qual o sujeito passivo declara, calcula e efetua o pagamento do valor
devido e, depois, a Fazenda homologa o procedimento - expressa ou tacitamente pelo decurso do prazo
– (art. 150, CTN). Nesta última modalidade podem ser incluídas as várias formas
de prestação de informações com pagamento conjunto, tais como a GFIP (Guia de
Recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e Informações à
Previdência Social) e a DCTF (Declaração de Contribuição de Tributos Federais).
Com o encerramento do procedimento administrativo – que deve
prever alguma etapa de abertura de defesa para o cidadão –, a “obrigação” vira
“crédito”. Se não for pago no prazo, ele é remetido para o setor jurídico para
a cobrança judicial (inscrito em Dívida Ativa) e é ajuizada a ação de “Execução
Fiscal” [para uma explicação lógica, filosófica e jurídica da necessidade e legitimidade de coerção para exigir o cumprimento das regras, vide o post sobre o dilema da honestidade irracional].
9. Considerações finais.
Conhecimento é poder e como poucos leigos conhecem de fato
as noções tributárias, é necessário transmitir estas informações de forma clara
e acessível para que, se quiserem, possam pressionar quem decide estas questões
no legislativo.
Só assim, por exemplo, o cidadão poderá saber que um
governante está mentindo quando diz esperar uma "Reforma Tributária" com algeração constitucional para
desonerar a folha de salários, pois, entendendo que a Constituição apenas
autoriza, mas não manda tributar, poderá compreender que basta uma Medida
Provisória revogar a Contribuição Previdenciária, sendo desnecessária qualquer
Emenda Constitucional. [Esta "Reforma Tributária salvadora" é uma falácia, no seu conceito lógico-formal. Para o tema, confira-se o meu post anterior sobre a possibilidade de mentir falando a verdade - ou meias-verdades]
Deixar de atuar politicamente por falta de conhecimento não
é culpa de ninguém, mas deixar de agir por desinteresse, sim.
Logo, a compreensão do fenômeno tributário não pode partir
apenas do ponto de vista jurídico e nem do econômico, mas sim, e
principalmente, das relações de poder que permeiam a Sociedade e, às vezes,
implicam desconhecimento sobre as leis ou favorecimento de grupos mais
mobilizados a fim de receberem benefícios fiscais (como as Imunidades).
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OBS.: Este texto ficou meio grande. Estava em "gestação" há algum tempo, pois sempre tive a vontade de tentar explicar os vários ramos do Direito em linguagem não jurídica, tanto quanto possível, ligando a regulamentação da lei com o fenômeno social, político e econômico que ele buscou tratar. Não sei se o texto conseguiu atingir alguma parte deste objetivo, mas não é apenas o resultado que conta.
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