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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

De quem é a flauta ?

Uma forma interessante de se expor argumentos e clarear as noções éticas e econômicas sobre a questão da Justiça é apresentar problemas práticos e tentar respondê-los. A obra de Michael Sandel (Justiça – abordada pelo colega George em seu blog: justica-o-que-e-fazer-a-coisa-certa/) é repleto destes exemplos, vários tirados de jornais (como o caso do aumento de preços pelos comerciantes após o furacão Katrina).

Um caso hipotético bem interessante é apresentado por Amartya: o problema de a quem dar a flauta quando três crianças a disputam com base em argumentos diferentes.

Neste cenário, existe uma única flauta e três crianças a querem, sendo incontroverso que:
[1] a criança “A” é a única que sabe tocar a flauta;
[2] a criança “B” é a mais pobre dentre elas e não tem outro meio de diversão; e
[3] a criança “C” foi quem fez a flauta com seu único e exclusivo esforço.

Para quem dar a flauta ?

Segundo ele, há várias respostas, conforme for o predomínio da teoria. Assim, uma teoria utilitarista reconheceria o direito de “A”, já que ela é a única que poderia tocar a flauta e gerar prazer à coletividade, ou, de forma alternativa, à criança “C”, se o utilitarista entender que o ganho social decorrente do direito de propriedade seria superior do que a sua desconsideração. 

Um igualitarista (Dworkin) reconheceria o direito de “B”, pois o seu estado de privação material seria atenuado e geraria um ganho em escala superior aos demais.

Por fim, uma posição libertária (Nozick) indicaria o direito de “C” pelo fato de que as pessoas tem direito ao fruto do que elas produziram.

Este problema é apresentado por ele para sustentar a sua tese de que são insuperáveis as divergências sobre a forma de distribuição dos bens/recursos e, portanto, não se deve buscar uma teoria perfeita, transcendental, mas apenas teorias comparativas que permitam reduzir desigualdades concretas.

Para ele, escolher uma das crianças seria escolher um critério e isso refletiria alguma forma de arbitrariedade.

Tirando de lado outras objeções ou argumentos quanto a esta tese principal de Amartya [uma exploração sobre a argumentação dele e algumas respostas ou objeções de outros filósofos está num artigo que é um catpítulo de um livro em coautoria, no prelo] e desconsiderando que o exemplo é uma abstração ideal que não ocorre no mundo real (ao menos da forma narrada) - que poderia ter outros elementos (e se houvesse uma quarta criança mais forte que simplesmente arrebatasse a flauta pela força ?) -, o fato é que, neste cenário, existe um problema da colisão de princípios básicos inerentes a cada uma das várias Teorias da Justiça.

Esta incapacidade de ordenar os diversos critérios que cada teoria transcendental propõe implica reconhecer a necessidade de uma metateoria de ordenação para cada tipo de problema específico.

No caso da distribuição da flauta, por exemplo, poderíamos entender que está implícito que, se houver solução, ela terá que, em certa medida, depender de uma escolha livre dos agentes e, por conseqüência, da comunidade em que vivem sobre quais são os critérios fundamentais. [vide aqui a resposta à hipótese cínica que defende apenas o uso da força sem nenhum princípio legitimiador da ação]  

Para isso, é necessário distinguir [a] o nível das propostas substantivas que geram os princípios e critérios de distribuição de uma Teoria da Justiça do [b] nível de uma teoria do procedimento de formulação e aplicação daqueles princípios.

Em outras palavras, uma coisa é a discussão sobre os critérios (dar ao mais forte, ao mais necessitado, ao mais útil), outra é a discussão sobre a origem destes critérios e a forma de resolver os conflitos entre eles; ou seja, Substância e Procedimento.

Não é à toa que vários filósofos perdem tanto tempo para apresentar a origem (contrato social, posição originária de Rawls, princípio discurso de Habermas, etc.) dos critérios e depois apresentam os respectivos critérios.
 
Parece razoável que a prevalência de um critério em determinado momento (pois na prática, parece-me difícil que um critério puro resolva todos os problemas) decorra de um juízo de valor emanado pelos membros da comunidade – ou, se apáticos forem, deleguem para seus representantes.

É possível cogitar-se, portanto, que a solução ao “metaproblema” se dê pelo estabelecimento das regras de discurso, notadamente as derivadas da teoria habermasiana, tal como a teoria da argumentação proposta por Alexy , atentando às especificidades das sociedades concretas, sobremodo no caso brasileiro.

Se estas regras procedimentais serão ou não observadas ou se as pessoas irão ou não participar passa do campo da discussão da Teoria da Justiça para o campo da ação política e prática de motivação e luta pelo que se entende correto.

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