Há alguns anos, enquanto redigia a minha Dissertação de Mestrado, que envolvia a ligação entre o valor Justiça e o Jurídico - por intermédio dos Princípios -, analisando um ramo específico do Direito (o Previdenciário), abordei, num dos sub-capítulos, a questão da legitimidade.
Para trabalhar o tema, entendi interessante tentar, na medida do possível, avaliar se era possível abordar a questão do ceticismo.
Para isso, desenvolvi a idéia da "Hipótese Cínica" (não sei se isso já foi usado antes, se foi, peço desculpas pela falta de originalidade).
A Hipótese Cínica é um modo de compreensão das relações sociais de poder que pode ser resumida no seguinte lema: “O poder basta em si mesmo. O Estado não é diferente de um bando de ladrões. As idéias de legitimidade do poder e da necessidade de submetê-lo a limites são tentativas ideológicas de mascarar a descrição da realidade. O discurso da Ética não leva a nenhum resultado útil por tentar amarrar a conduta humana a freios que não são naturais e que dependem da vontade de obedecer. Esta vontade de obedecer é uma mera vontade e, como tal, pode mudar. Por isso, não cabe à Ciência ou à Filosofia dizer como a conduta do governante deveria ser, mas sim dizer como ela realmente é. Disso decorre que a Constituição é somente uma folha de papel. Se as relações de poder de fato decidirem destruí-la ou ignorá-la, o farão, expressa ou sub-repticiamente.”
Seria esta hipótese verdadeira ? Há alguma objeção possível a ela que não seja meramente valorativa, isto é, é possível recusar a hipótese cínica sem que se diga que “não concordo e por isso sou contra ela” ?
Creio que sim.
A resposta passa pela dissecação da relação entre Estado, Poder, Força e Legitimidade.
A primeira premissa é que historicamente nenhuma estrutura de poder consegue, a longo prazo, estabelecer-se e se manter unicamente pela força física (coação).
No início de uma comunidade política, o Poder se impõe como um fato: o fato da força (física ou de convencimento).
A manutenção do sistema de poder exige a criação de instituições (que podem ser simples, como uma tribo, ou complexas, como a sociedade contemporânea) que se mantém por um conjunto de regras, para si e para os seus integrantes.
O estabelecimento do Estado implica uma estratégia de manutenção dessa estrutura e, simultaneamente, de controle deste e por meio deste.
Este conjunto de regras, porém, não é aplicado só e somente só pela força. Basta ver que, no dia a dia, as pessoas obedecem a maior parte das regras (por exemplo: sinais de trânsito. A grande maioria para no sinal vermelho e espera o verde).
Há uma adesão, que será maior ou menor tanto pelo potencial de sanção (adesão forçada) quanto pelo sentimento de legitimidade destas regras (adesão voluntária).
Por isso, existe, por detrás de qualquer poder, uma condição de valores consensualmente aceitos que refletem interesses, aspirações e necessidades de uma comunidade com a qual o poder tem que se adequar.
Ao inserir esta variável da legitimidade, a relação entre Direito e Política se inverte: não é mais o poder político que produz o Direito, mas o Direito que justifica o poder político.
Justificada a existência do Estado pela necessidade de superação do Estado de natureza, definem-se estratégias para que os detentores do poder não abusem deste. Uma delas é a positivação de uma Democracia com respeito a direitos fundamentais, evitando-se a tirania da maioria; outra, a possibilidade (ainda que teórica) da Desobediência Civil.
Além delas, a institucionalização de um Estado social também é uma estratégia política para assegurar condições econômicas e sociais mínimas que permitam o desenvolvimento do modelo de cooperação.
A referência a um princípio de legitimação – como o do justo título do Contratualismo – opera diversas transformações: o poder de impor deveres em um direito de exigir condutas; a obediência muda para um dever de agir conforme a norma e a relação de força vira uma relação jurídica.
Portanto, o Direito deve prover uma justificativa para o uso do poder e qualquer teoria política do direito deve não só incluir o fundamento das regras jurídicas, mas também o fundamento da Força do Direito, isto é, do motivo porque o direito pode coagir.
Sem essa justificação, as divergências entre os membros de uma comunidade levariam não só à desobediência civil, mas também à própria desestruturação da sociedade.
Assim, é possível dizer que a ausência do sentimento de legitimidade do Estado e de suas normas pelos cidadãos implicaria o enfraquecimento da obrigação política e, no limite, a Desobediência Civil, rejeitando-se, pois, a hipótese cínica.
Essa rejeição implica reconhecer que o poder do Estado e do Direito não decorre apenas do uso da força, mas também, e principalmente, da sua capacidade de se apresentar como legítimo, construindo, simbolicamente, a sua observância.
No meu livro "Previdência e Justiça: O Direito Previdenciário no Brasil sob o Enfoque da Teoria da Justiça de Aristóteles", publicado pela Juruá, escrevi sobre o tema com as devidas orientações metodológico-científicas. Retomei o tema, ainda superficialmente, no capítulo do livro "Desatando os nós do neoconstitucionalismo brasileiro", parte do livro HIROSE, Tadaaqui; GEBRAN NETO, João Pedro.. (Org.). Curso Modular de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito Editorial, 2010, v. , p. 111-162.
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