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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

De quem é a flauta ?

Uma forma interessante de se expor argumentos e clarear as noções éticas e econômicas sobre a questão da Justiça é apresentar problemas práticos e tentar respondê-los. A obra de Michael Sandel (Justiça – abordada pelo colega George em seu blog: justica-o-que-e-fazer-a-coisa-certa/) é repleto destes exemplos, vários tirados de jornais (como o caso do aumento de preços pelos comerciantes após o furacão Katrina).

Um caso hipotético bem interessante é apresentado por Amartya: o problema de a quem dar a flauta quando três crianças a disputam com base em argumentos diferentes.

Neste cenário, existe uma única flauta e três crianças a querem, sendo incontroverso que:
[1] a criança “A” é a única que sabe tocar a flauta;
[2] a criança “B” é a mais pobre dentre elas e não tem outro meio de diversão; e
[3] a criança “C” foi quem fez a flauta com seu único e exclusivo esforço.

Para quem dar a flauta ?

Segundo ele, há várias respostas, conforme for o predomínio da teoria. Assim, uma teoria utilitarista reconheceria o direito de “A”, já que ela é a única que poderia tocar a flauta e gerar prazer à coletividade, ou, de forma alternativa, à criança “C”, se o utilitarista entender que o ganho social decorrente do direito de propriedade seria superior do que a sua desconsideração. 

Um igualitarista (Dworkin) reconheceria o direito de “B”, pois o seu estado de privação material seria atenuado e geraria um ganho em escala superior aos demais.

Por fim, uma posição libertária (Nozick) indicaria o direito de “C” pelo fato de que as pessoas tem direito ao fruto do que elas produziram.

Este problema é apresentado por ele para sustentar a sua tese de que são insuperáveis as divergências sobre a forma de distribuição dos bens/recursos e, portanto, não se deve buscar uma teoria perfeita, transcendental, mas apenas teorias comparativas que permitam reduzir desigualdades concretas.

Para ele, escolher uma das crianças seria escolher um critério e isso refletiria alguma forma de arbitrariedade.

Tirando de lado outras objeções ou argumentos quanto a esta tese principal de Amartya [uma exploração sobre a argumentação dele e algumas respostas ou objeções de outros filósofos está num artigo que é um catpítulo de um livro em coautoria, no prelo] e desconsiderando que o exemplo é uma abstração ideal que não ocorre no mundo real (ao menos da forma narrada) - que poderia ter outros elementos (e se houvesse uma quarta criança mais forte que simplesmente arrebatasse a flauta pela força ?) -, o fato é que, neste cenário, existe um problema da colisão de princípios básicos inerentes a cada uma das várias Teorias da Justiça.

Esta incapacidade de ordenar os diversos critérios que cada teoria transcendental propõe implica reconhecer a necessidade de uma metateoria de ordenação para cada tipo de problema específico.

No caso da distribuição da flauta, por exemplo, poderíamos entender que está implícito que, se houver solução, ela terá que, em certa medida, depender de uma escolha livre dos agentes e, por conseqüência, da comunidade em que vivem sobre quais são os critérios fundamentais. [vide aqui a resposta à hipótese cínica que defende apenas o uso da força sem nenhum princípio legitimiador da ação]  

Para isso, é necessário distinguir [a] o nível das propostas substantivas que geram os princípios e critérios de distribuição de uma Teoria da Justiça do [b] nível de uma teoria do procedimento de formulação e aplicação daqueles princípios.

Em outras palavras, uma coisa é a discussão sobre os critérios (dar ao mais forte, ao mais necessitado, ao mais útil), outra é a discussão sobre a origem destes critérios e a forma de resolver os conflitos entre eles; ou seja, Substância e Procedimento.

Não é à toa que vários filósofos perdem tanto tempo para apresentar a origem (contrato social, posição originária de Rawls, princípio discurso de Habermas, etc.) dos critérios e depois apresentam os respectivos critérios.
 
Parece razoável que a prevalência de um critério em determinado momento (pois na prática, parece-me difícil que um critério puro resolva todos os problemas) decorra de um juízo de valor emanado pelos membros da comunidade – ou, se apáticos forem, deleguem para seus representantes.

É possível cogitar-se, portanto, que a solução ao “metaproblema” se dê pelo estabelecimento das regras de discurso, notadamente as derivadas da teoria habermasiana, tal como a teoria da argumentação proposta por Alexy , atentando às especificidades das sociedades concretas, sobremodo no caso brasileiro.

Se estas regras procedimentais serão ou não observadas ou se as pessoas irão ou não participar passa do campo da discussão da Teoria da Justiça para o campo da ação política e prática de motivação e luta pelo que se entende correto.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Afinal, o STF é um tribunal político ou jurídico ?

Há um questionamento interessante, muitas vezes trazido como crítica ao Judiciário, dizendo que o STF é um tribunal político, e não jurídico.

Isso leva a outras questões - normalmente não respondidas: existe uma diferença entre Política e Direito ? O que é Política ? Se existe a diferença, é possível dizer que um é "melhor" que outro ? Se o STF é político, as outras cortes e juízes não são ?

Sobre o conceito de Direito, já tracei algumas linhas [vide: o-sempre-discutido-conceito-de-direito](pretendo aprofundar isso no futuro), por isso o interesse agora é debater um pouco a ideia de Política.

De início, é algo quase evidente que Política não se confunde e não se reduz aos Partidos Políticos, sendo algo que permeia todas as relações. O senso comum não aceitaria dizer, por exemplo, que a atuação dos sindicatos nas greves não seria algo "político". Portanto, a noção de Política não pode deixar isso de lado.

Um dos conceitos usuais liga a Política à esfera de ação que busca conquistar e manter o poder superior dentro de uma comunidade (Bobbio). Parte do pressuposto da divisão entre os tipos de poderes (econômico, ideológico e força física) e que a possibilidade de usar a força policial e exércitos seria o maior poder [interessante como a imagem das forças armadas tomando as comunidades no Rio para implantação das UPPS reflete, em certa medida, esta noção de poder].

Mas será que esta redução do Político ao uso potencial das forças armadas é suficiente ?  Seria correto deixar de fora todas as demais ações sociais ? Voltando à política partidária, será que, por exemplo, a disputa presidencial entre Dilma e Serra era para ver quem ia ser o comandante das forças armadas ?

A resposta quase evidente destas perguntas mostra a insuficiência desta noção e leva à necessidade de aprimorá-la.

Olhando de novo a relação entre Política e Poder, lembra-se da percepção de que as relações poder existem onde houver ser humano. Dentro da família, na escola (professor vs. aluno; alunos vs. alunos; professores vs. funcionários, etc.), nas empresas, órgãos burocráticos, dentro dos próprios partidos; ou seja, cada microcosmo da Sociedade reflete algum tipo de relação de poder, que é algo fluido, exercido em cadeias, às vezes explicitamente, às vezes de forma sutil (Foucault). O poder nada mais é do que capacidade que um sujeito ou grupo de realizar a sua vontade, influenciando, condicionando ou determinando o comportamento de um ou mais pessoas (Bobbio).

Porém, não é apenas o exercício do poder físico. Caso contrário, teríamos que admitir que um assaltante está realizando Política, e não um ato ilegal e imoral [como sugere o senso comum, o crime não é uma ação política, mas se isso é, ou não, ilegal ou imoral, vale um post, ou uma dezena de posts].

É necessário algum tipo de legitimação deste poder, que pode ser um princípio democrático, o carismático (religioso, por exemplo) ou outro qualquer.

Será que bastaria ligar um princípio de legitimação deste poder para torná-lo político ? Abordei um pouco disso em outro post [vide: hipotese-cinica ], mas só isso seria insuficiente. Afinal, a máfia, bem ou mal, também usa de princípios com aparência de moral (família, lealdade etc.) e não se pode atribuir o caráter de ação política às suas operações.

Olhando o fato de que o senso comum também acharia estranho falar em política quando do exercício de uma relação de poder entre dois indíviduos, começa a ficar claro que a noção de Política envolve não só o Poder e o princípio de legitimação, mas também um grupo social. Assim, é possível falar em política dentro de uma empresa, de um sindicato e de uma Nação. Nesta linha, a relação entre indivíduos está no âmbito da Ética (moral), a relação entre indivíduo dentro de grupos, na esfera da Política (ação social).

Esmiuçado o conceito de Política, ao se examinar a questão inicial (o caráter do STF), parece ficar clara a resposta de que, quando o STF resolve processos que tenham eficácia sobre grupos sociais (em "juridiquês": ações com efeito erga omnes como ADI, ADC, ADPF, etc; ações individuais com reflexos gerals- RE com repercussão geral -, etc.), fica claro o caráter Político - com "P" maiúsculo - de sua decisão, ainda que o racicínio da Corte naquele caso seja a simples aplicação de um dispositivo legal (em juridiquês: a mera subsunção com interpretação literal). [Aliás, a aplicação literal de dispositivos de lei sem construção normativa nenhuma seria uma opção política clara de deferência ao Poder Legislativo].

Seria possível extrapolar isso para julgamentos individuais ? Se imaginarmos que a Corte dará prevalência aos seus próprios precedentes - tal como faz a US Supreme Court - então a conclusão lógica é que aquela decisão individual reflete uma opção que será permanente (ou eterno enquanto dure, risos) e, com isso, é uma decisão não só jurídica, mas também política.

Uma questão isso levanta  é se isso não representa uma absorção do jurídico pelo Político. Em outras palavras: existe mesmo uma diferença entre Direito e Política ? Aí o tema vale outro "post" completo...

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O dilema da "honestidade irracional" ou "razão desonesta".

Em seu livro "Justiça Política", Otfried Höffe apresenta um interessante problema: o dilema do pingente (ou o surfista de trem, adaptando à realidade brasileira), que usa o transporte público sem pagar, prejudicando os demais, que usam o ônibus e arcam com os custos daquela locomoção desonestamente gratuita [para simplificar este "post" - que discute os fundamentos da estratégia de coação para cumprimento das normas -, não entro na discussão acerca da falta de investimentos no serviço público de transporte e nem na gritante diferença das realidades brasileira e alemã].

Usando outras palavras, se o sistema pressupõe que todos serão honestos, então caso uma pessoa resolva ser desonesta, ele terá as vantagens do sistema (ônibus), sem as desvantagens (custos). 

Se o honesto perceber a possibilidade de desonestidade de alguma outra pessoa, então o racional, para ele, será ser desonesto, pois do contrário ele será uma presa fácil para os outros.

Num primeiro momento, o dilema aponta para uma certa racionalidade dos desonestos.

Porém - e aqui vem o "pulo do gato" -, se todos forem livres ilimitadamente para serem desonestos, então a convivência comum seria impossível, pois haveria a luta de todos contra todos e uma desconfiança geral que impediria qualquer empreendimento comum (como imaginar um contrato de promessa de compra e venda se ninguém confia em ninguém e não há nenhuma garantia ?).

De outro lado, se todos renunciarem voluntariamente à sua liberdade ilimitada, aceitando algumas limitações, o racional, para cada um, será agir de forma desonesta, a fim de obter maiores vantagens.

Como todos perceberiam isso, o caos estaria instalado, pois todos se tratariam segundo a medida exclusiva de suas forças e o "direito a tudo" se transformaria num "direito a nada".

Claramente Otfried pressupõe que a Moral irá refrear estes impulsos para alguns, mas não todos, o que parece um pressuposto pragmático correto, uma vez que, ainda que a grande maioria das pessoas obedecesse às leis apenas por um sentimento moral, a pequena minoria a-moral ou i-moral se aproveitaria.

Logo, tanto a liberdade ilimitada de todos quanto a liberdade limitada sem coação geram situações racionalmente propensas à desonestidade; como a longo prazo a desonestidade geral não compensa, este dilema é usado por Otfried para demonstrar e justificar a necessidade da sanção organizada para assegurar a liberdade.

Assim, só é possível ser verdadeiramente livre se houver um sistema que preveja penas para aqueles que forem desonestos por não renunciarem à liberdade ilimitada. Então, a liberdade possível é a liberdade com renúncia à parcela da própria liberdade.

Ao resultar na máxima de que a impunidade gera a desonestidade, a discussão pode parecer "chover no molhado", porém, do ponto de vista filosófico, a argumentação tem suas consequencias práticas interessantes:

[1] deixa clara a necessidade de um sistema de coerção;

[2] afasta a tese da Anarquia (vista como a ausência de um sistema institucionalizado - formal ou informal - de coação);

[3] torna irrelevante a discussão entre o Estado de Natureza Hobbesiano x Estado de Natureza Rousseau; e

[4] justifica, moralmente, a pena como reação à conduta ilegal.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Críticas à instituição do "Juiz de Garantias".

O artigo abaixo foi publicado hoje pelo site CONSULTOR JURÍDICO (http://www.conjur.com.br/2011-nov-10/criticas-logico-juridicas-instituicao-juiz-garantias-sao-necessarias)

O artigo é auto-explicável, mas depois de publicado e de ver uma mensagem de um colega, pensei num "fecho" ou "introdução"  que seria ideal :
"O juiz não tem compromisso em condenar ou absolver, e sim de ser imparcial e aplicar a Constituição e as leis do país". (pena que já tinha sido publicado o artigo, mas aqui no blog dá para incluir)

Eis o artigo:

Críticas lógico-jurídicas contra o juiz de garantias

Tramita na Câmara dos Deputados, sob o número 8.045/2010, o projeto de novo Código de Processo Penal (CPP), com a promessa de que sua aprovação irá colaborar na redução da impunidade no Brasil.
Há diversos problemas neste projeto, mas um dos que tem sido mais divulgados como a grande “novidade” ou “solução” trará, em verdade, um atraso no combate ao crime.

Trata-se do chamado “Juiz das Garantias”, isto é, a ideia de separar o juiz que atua na fase da investigação criminal daquele que comanda a ação penal, proibindo que presida a ação o juiz que tenha determinado ou decidido alguma medida liminar ou de prova durante o inquérito.

Esta proposta, porém, tem sofrido inúmeras críticas - muitas com razão, por sinal.

O presente artigo pretende arrolar algumas destas críticas, usando, tanto quanto possível, linguagem clara e fora do conhecido “juridiquês”, a fim de permitir que todos possam compreender os motivos que levam a crer que esta novidade será um retrocesso no combate à impunidade.

Uma das principais críticas é de ordem prática: nas comarcas do interior, que tenham poucos juízes, a novidade acabaria com as especializações de varas criminais ao obrigar que o juiz cível atue ou na investigação ou na ação penal, medida que, na realidade, atrasará mais ainda o processo. Embora o projeto permita que, no começo, o instituto não se aplique às comarcas com apenas um juiz, ele prevê que, no futuro, de acordo com as regras locais, será aplicável. Isso tornará mais lenta a situação dos processos em que o juiz da comunidade não poderá presidir a ação, transferindo tudo para outra cidade, a depender de viagens e deslocamentos ou do juiz vizinho ou das testemunhas, vítima, advogados e réus para aquele outro local. Este fato já foi apontado pelo CNJ, que, em sua nota técnica 10, de 2010, observou que 40 % das comarcas do Brasil tem apenas uma única Vara.

Outra crítica faz referência ao momento político de nascimento da proposta, pois logo em seguida a rumorosos casos envolvendo crimes de colarinho branco, em especial banqueiros, com prisões determinadas por juízes de primeiro grau.

Uma terceira crítica, agora com relação à academia, é que alguns teóricos apontam a necessidade desta separação como se fosse uma tendência internacional. A doutrina funda esta conclusão com base em julgamentos da década de 80 do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (casos Piersack vs. Bélgica e De Cubber vs. Bélgica). Porém, não observam que os precedentes citados referem-se a casos em que o juiz tinha sido “de fato” o órgão investigador (o que no Brasil já gera o impedimento na atuação do juiz que tiver sido policial ou promotor no mesmo caso) e não esclarecem que, posteriormente, na década de 90, a mesma corte internacional entendeu que esta diretriz não se aplicava ao caso do juiz que tivesse apreciado pedidos de prisão ou de produção de prova antes do processo criminal, esta sim a hipótese da novidade em questão. Para o tema, confira-se, com maiores detalhes: http://www.paginasdeprocessopenal.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=40:o-juiz-das-garantias-na-interpretacao-do-tribunal-europeu-dos-direitos-do-homem&catid=7:artigos&Itemid=6 .

Porém, as críticas que entendo mais importantes são de ordem lógica e jurídica, que são muito mais fortes e contundentes e, curiosamente, menos lembradas.

O projeto parte do pressuposto da "contaminação" do juiz pela prova, pelo qual o o juiz que defere uma liminar ou uma medida de investigação faria um um juízo de valor - ainda que parcial - sobre o mérito e, por isso, ficaria “suspeito” ou “tendente em condenar” (interessante que não se menciona o fato de que o juiz que indeferir as medidas ficaria mais tendente a absolver).

Nada mais falso, por múltiplas razões.

Primeiro: o fato de o juiz deferir uma prova no começo de um processo ou decidir sobre um flagrante não implica que, posteriormente, com outras provas realizadas, o mesmo juiz não possa ter outro convencimento.

O fato de um magistrado permitir uma interceptação telefônica à luz de indícios iniciais não quer dizer que depois, com a ação penal e a instrução, o juiz, estudando as provas e ponderando os argumentos, não possa absolver. Apesar de inicialmente ter tido a impressão de que havia indícios, o juiz pode perceber - e isso acontece várias vezes - que não há prova suficiente à condenação ou concluir que a pessoa é, na realidade, inocente. Ademais, a própria prova determinada pelo juiz pode revelar pelo seu conteúdo que o investigado é inocente !

Aliás, o fato de o Juiz ter iniciativa probatória ou conhecer de alguma medida durante o inquérito não significa que irá produzi-la contra o réu. O juiz busca a verdade possível, dentro das regras processuais, pois ninguém tem poderes paranormais para adivinhar como ocorreram os fatos.

Segundo: qualquer estudante de Direito sabe que existem duas distinções muito claras e importantes não observadas pelos defensores do “Juiz das Garantias”.

Uma coisa é o chamado “juízo de cognição sumária e provisório”, que é a decisão feita no começo de um processo à luz dos documentos juntados neste início (por isso sumário, já que não é completo) e que pode se modificar posteriormente, com novas provas (daí o nome provisório).

Outra coisa, bem diferente, é o “juízo de cognição ampla e definitiva”, no qual o juiz analisa todos os documentos juntados por todas as partes com base em todos os argumentos aprofundados (por isso, amplo) e, então, quando forma a sua certeza, sentencia o processo.

Tal como ocorre no processo civil, uma medida liminar pode ser dada àquele que, num primeiro momento, tem maior probabilidade de estar com a razão (em linguagem jurídica, plausabilidade do direito invocado e verossimilhança das alegações, ou, ainda, “fumaça do bom direito”), e, depois, constatar que a razão cabia à parte contrária. Isso é normal e faz parte do jogo [para eventuais erros, há os recursos].

A outra distinção esquecida é entre o juízo de admissibilidade - decidir se pode ser feita uma prova ou não (ex: rejeitar uma gravação clandestina) - e o juízo sobre o conteúdo da prova - decidir se esta prova confirma os fatos alegados.

Em outras palavras, por exemplo, o juiz pode determinar um exame de DNA para apurar a paternidade, mas o exame dizer que a pessoa investigada não é o pai !

O fato de o juiz decidir que, naquele processo, era admissível o exame de DNA não obriga que o juiz se “contamine” e obrigatoriamente vá concluir que a pessoa é o pai. Isto é algo óbvio que aparentemente foi esquecida na defesa deste projeto.

O terceiro argumento é o da inutilidade da medida. Isso porque, se esta “contaminação” existisse, então o “Juiz de Garantias” não impede que posteriormente o juiz se contaminasse por outras decisões que são dadas entre o início da ação penal e a sentença.

Se assim não fosse, o juiz que atua no inquérito teria que ser um; o juiz que recebe a denúncia teria que ser outro; o juiz que ouve uma testemunha teria que ser um terceiro; o juiz que toma o interrogatório seria o quinto (afinal, ele tem que ouvir o réu sem se deixar influenciar pelas testemunhas) e o juiz que decide teria ser o sexto...

Aliás, e houvesse contaminação do juiz por ter proferido decisões admitindo a produção de provas ou deferindo medidas cautelares em favor de uma das partes antes do julgamento do processo, então a mesma medida deveria ser criada no processo civil com as ações que  tratam de direito civil, administrativo, tributário, previdenciário, eleitoral e outras, porque também na jurisdição civil há medidas cautelares e de produção antecipada de provas.

E não bastaria criar Juiz de Garantias apenas no primeiro grau da jurisdição criminal!

Ele teria que ser criado também nos tribunais, porque uma determinada medida cautelar ou de produção de prova pode ser indeferida pelo juíz de primeiro grau e, em face de recurso, ser deferida por juízo de jurisdição mais elevada; nesse caso, o juiz da jurisdição mais elevada não só não está proibido de conhecer o processo posteriormente, como ocorerá justamente o contrário, isto é, ele é obrigado (ficará prevento) a conhecer de todos os demais recursos daquele processo, inclusive a apelação contra a sentença de mérito. Se o raciocínio do contágio fosse verdadeiro, ele dependeria também da apreciação de recursos com magistrados diversos.

Tudo isso para que um juízo proferido na fase anterior ou a colheita da prova anterior não "contaminasse" o juiz posterior.

O absurdo das conclusões demonstra a inutilidade da medida.

Em resumo, estes três argumentos demonstram que a inovação do “Juiz das Garantias” é uma medida desnecessária que, além das críticas práticas, políticas e contrárias à tendência internacional, ignora conceitos básicos da lógica do Direito. Ao final e ao cabo, será inútil, poderá gerar inúmeras discussões jurídicas com nulidades processuais que nada tem a ver com o mérito, gastando esforços que poderiam estar concentrados naquilo que realmente interessa.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

É possível mentir falando a verdade ?

É cena comum um administrador público dizer que a postura X "é republicana" ou que a medida Y é "democrática" ou que "serão tomadas as medidas corretas" etc.

Ele está mentindo ou falando a verdade?

Nem um nem outro, ou ambos (risos).

Ele está usando uma Falácia, isto é, uma forma de argumentação logicamente incorreta.

No caso, ele se utiliza de um tipo de falácia baseada no uso de expressões cujo significado não é claro ou ambíguo, mas que sugere um resultado, digamos, simpático, geralmente aceito e de fácil adesão.

Um exemplo é o uso da palavra “democracia”, que torna a pessoa propensa a aceitá-la, ainda que não haja um acordo semântico claro sobre qual o conceito de democracia que usam (direta? representativa? substancial ou formal?).

No Direito, por exemplo, seria o mesmo que uma situação hipotética em que um Tribunal decidisse simplesmente dizer que "a lei X ofende a dignidade da pessoa humana e por isso é inconstitucional".

A expressão "dignidade da pessoa humana" (DPH) é ampla, tem inúmeros significados conforme se interprete, e seu uso, sem maiores digressões no caso concreto ou exemplificação sobre o quê se entende por DPH acaba sendo uma falácia. [aliás, para esta expressão em particular, além da obra do Ingo Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, o melhor estudo que já li sobre o tema, sem querer puxar a sardinha para a minha brasa, foi a dissertação de mestrado de minha esposa, Desirré, que, em 2006, analisou o tema primeiro no campo filosófico, a partir da obra de Hanna Arendt, e, depois de fixado referencial teórico, analisou-o na prática, ou seja, em todos os julgados do STF que haviam abordado o tema até aquela época. Pena que até hoje ela não publicou a dissertação. Eis o link http://siaibib01.univali.br/pdf/Desirre%20Dorneles%20de%20Avila%20Bollmann.pdf]

O uso deste tipo de falácia acaba se transformando na concretização da "katchanga" [contribuição humorística dada por um colega aqui de SC para o direito pós-constitucional (risos), que já foi objeto de teorização mais profunda pelo colega George, do CE, que, em seu blog, discorre sobre o tema à luz do Direito Constitucional e da teoria da argumentação de Alexy. Vale a pena a lida: http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga].

De forma rápida, esta teoria da katchanga parte da seguinte piada: Num cassino da fronteira chega um fazendeiro rico que olha cada uma das mesas e se senta sozinho num canto do salão. Querendo tirar um pouco do dinheiro, o dono do cassino fica curioso e pergunta: - O Senhor não vai jogar nada ? - “No me gusta lo poker ni lo black jack. Solo juego la Catchanga”, respondeu o ricaço estrangeiro. O dono do cassino não conhecia este jogo. Ele volta ao salão e pergunta aos crupiês se algum deles conhece a tal da Catchanga. Como ninguém conhece, o dono do cassino teve uma idéia: chama os seus melhores crupiês e diz: “vocês dão as cartas para o pato e deixam ele jogando. No início, vamos perder um pouco de dinheiro, mas com o tempo vocês percebem as regras e no final nós o depenamos”. Os jogadores convidaram o cliente e sentam-se na mesa. Na primeira rodada, o ricaço pegou o maço, distribuiu três cartas para cada um. Todos ficaram parados olhando as cartas. O ricaço, subitamente, grita “Catchanga!” e pega todas as fichas da mesa. Na segunda rodada o mesmo aconteceu. Idem na terceira e na quarta. Isso já ia a noite inteira. O cassino já estava quase falindo e os crupiês não estavam entendendo nada. De repente, um dos jogadores pensou: “ele está nos enganando” e, ao receber as suas cartas, antes que o ricaço pudesse fazer algo, gritou: “Catchanga!”. Quando o jogador ia pegar as fichas, o ricaço baixou as suas cartas, disse: “No, no. Catchanga Real!” e levou o dinheiro...

Trocando em miúdos, o uso retórico de argumentos guardados na “manga” impede a solução racional da argumentação, gerando uma discricionariedade disfarçada de racionalidade.

Enfim, respondendo se é possível mentir falando a verdade, creio que, usando estes termos ambíguos, de fácil adesão, com mais conteúdo emocional do que racional, é possível argumentar com enunciados que a pessoa entende verdadeiros, embora chegue a resultados não tão verdadeiros assim. No dia a dia forense, os juízes se deparam com estes tipos de argumentos (e outros) que pretendem convencer o julgamento no sentido favorável de quem o utiliza. Às vezes, conseguimos identificá-los, às vezes, não (e para isso o sistema prevê os recursos para que tribunais com juízes mais experientes possam corrigir eventuais erros - a sobrecarga de trabalho, causada pelo excesso de recursos e facilidade de seu uso, pode impedir ou prejudicar esta análise mais acurada, mas isso é tema para outro "post").

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Uma introdução ao conceito de Justiça.

Um dos temas fundamentais para o Direito, a Ética, a Filosofia, dentre outros, é a Justiça.

Discutida há séculos em milhares de obras, gerou alguns consensos, mas há várias divergências, algumas talvez insuperáveis.

Um dos pontos que parecem ser consenso é que a Justiça é um Valor, isto é, uma operação mental ou sentimental de uma pessoa ou grupo de pessoas que qualificam, positiva ou negativamente, ações ou fatos. [Evidentemente estou simplificando um pouco a questão, pois existem divergências filosóficas sobre o que é um Valor e se ele está nas Coisas-em-si ou se está no sujeito que avalia a coisa. Por exemplo, os sofistas distinguiam o justo natural (objetivo e independente dos homens) do justo legal (subjetivo e decorrente da vontade dos homens)].

Sendo um Valor, a Justiça motiva as pessoas a fazerem o justo, indicando a orientação à ação. O sentimento e a idéia de justiça são poderosas forças motivadoras.

Porém, a maior divergência será sobre “o quê é justo” e “o quê é injusto”.

Essa discussão acaba abrangendo outros valores como a Igualdade, a Liberdade, a Felicidade e o Bem-Estar.

Algumas concepções de Justiça definem a conduta Justa como um Justo-em-Si, ou seja, como um Valor independente dos demais; outras, porém, definem o Justo ligado a outro valor que deverá ser maximizado, como a Felicidade.

Um dos primeiros conceitos de Justiça está ligado à Igualdade. Dar a cada um o que é seu. Tal como dizer o que é o justo, difícil é dizer o que é o seu. Com Aristóteles, a igualdade é vista sob duas principais perspectivas: a Justiça Corretiva (sendo o justo manter o equilíbrio entre perdas e ganhos nas relações entre as pessoas) e a Justiça Distributiva (distribuição das coisas que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham dos benefícios da coletividade, buscando a Justiça mediante distribuição proporcional à necessidade e/ou participação, conforme o caso).

Outra visão liga a Justiça à Liberdade (Kant). A ação é justa quando por meio dela a liberdade de um indivíduo pode coexistir com a liberdade de todos como uma máxima universal, ou seja, a liberdade não encontra outro limite que não seja a liberdade dos outros.

Rawls, em estudo contemporâneo propõe uma igualdade de liberdades com desigualdades aceitáveis só para vantagens acessíveis a todos (o tema vale um post futuro mais abrangente, detalhando sua proposta e apresentando algumas críticas a ela. Atualizado: acabo de fazer o post específico sobre Rawls, clique aqui).

Um quarto conteúdo de justiça refere-se a um Bem (Comum ou individual), como a Felicidade ou o Prazer, e à necessidade de maximização deste (Utilitarismo). A princípio, a idéia é quase óbvia e de adesão imediata. Porém, gera diversas questões, como [1] a eleição de qual Bem a ser maximizado (Felicidade ? Liberdade ?); [2] se é Individual ou Coletivo; [3] como se faz para medi-lo ?; [4] como resolver conflito entre o coletivo e o individual (seria ético, apesar de útil, sacrificar o modo de vida de algumas pessoas – por exemplo, uma tribo de índios – para aumentar a felicidade geral dos demais ?); [5] e os seus conflitos com limites morais e éticos (Por exemplo: seria útil extrair os órgãos de uma pessoa para transplantar e salvar a vida de várias outras ?).

Além destas divergências de conteúdo, há discussões ainda mais importantes, tais como saber se: [a] é possível haver algum consenso sobre o que é Justiça ou se a Justiça pode ser explicada racionalmente ou ela é um sentimento ? [b] Como tudo isso se relaciona com o Direito ? [c] É válida essa discussão ?

Há quem diga (Alf Ross), por exemplo, que é impossível uma discussão racional sobre a Justiça diante da existência de diversos critérios materiais, pois quando alguém diz “sou contra essa regra porque ela é injusta”, na verdade quer dizer “essa regra é injusta porque sou contra ela”. Para ele, o argumento de Justiça seria como dar uma pancada na mesa com vista ao convencimento emocional (persuasão) e não racional (argumentação). E há também quem diga (Amartya Sen) que a discussão sobre uma Teoria Transcendental de Justiça, que busca dizer “o que é o justo”, deva ser substituída por uma Teoria Comparativa, que busque apontar “como reduzir as desigualdades”.

Enfim, embora sem uma conclusão definitiva, prefiro ficar com quem (Sandel) entende que estudar a Justiça é válido, sim, nem que seja para esclarecer argumentos usados nas discussões Morais e Políticas (e, ainda Jurídicas, acrescento, mas isso é tema para outro Post, com mais espaço).


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Aos que chegaram até o final do texto, depois que eu postei este pequeno artigo, fiz vários outros, disponíveis neste blog, que abordam ou aprofundam algumas das questões aqui colocadas. Dentre eles, vale a pena dar uma olhada em [1] post em que fiz um grande retrospecto e resumo dos outros artigos, valendo como uma espécie de sumário;  ou, mais especificamente, no [2] que aborda o conflito entre concepções distintas de Justiça e o dilema disso decorrente [3] que discute a relação entre Direito, Política, Economia e Moral à luz da obra de Sponville; e [4] o que discute se vale a pena ou não discutir Justiça

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Vale a pena estudar "Justiça" ?

Às vezes, pessoas mais pragmáticas podem perguntar-se: existe alguma utilidade em estudar um tema como "Justiça"? Ela gera alguma consequência prática? As divergências sobre o assunto não geram uma discussão sem fim? Não seria possível julgar os processos apenas com base no Direito?

A primeira resposta é a de que, se o tema vem sendo discutido há séculos, alguma importância ele tem para as pessoas; logo, esclarecer - ainda que não resolva - um tema a que as pessoas entendem relevante já é uma utilidade prática.

Outra resposta, no plano da Política, é que a ideia de Justiça é um valor e, como tal, mobiliza as pessoas. Uma concepção liberal mobilizará a ação para atingir objetivos liberais. Uma abordagem social, porém, gerará ação em sentido diferente. Assim, a discussão sobre o tipo de Justiça que se busca numa determinada Sociedade é um tema relevante e gera, sim, ações e resultados diferentes no plano político, isto é, no campo da convivência entre as pessoas de uma comunidade.

A terceira resposta, agora ligada ao Direito, é que, muito embora seja discutível a relação ou independência entre as esferas da moral, política e direito (abordei rapidamente o tema em post anterior e pretendo retomar isso no futuro), a verdade é que, mesmo se formos atentar única e exclusivamente ao direito legislado, há várias referências ao termo "Justiça"; portanto, é necessário, sim, tentar compreendê-lo melhor a fim de bem interpretar a norma (ou construir a norma, como seria possível dizer a partir do Realismo Jurídico e da Hermenêutica Gadameriana).

De fato, nota-se, no texto advindo em 1988, que a Justiça é explicitamente colocada como um dos objetivos principais do Estado Brasileiro (Art. 3º, I), bem como critério de avaliação na sua relação com particulares [da indenização por desapropriação pelo Estado (art. 5º, XXIV; art. 182, §3º; e art. 184)] e em certas relações entre os próprios particulares [causa de rompimento unilateral do contrato de trabalho (art. 7º, I)].  Além disso, a Justiça Social é galgada a critério fundamental de avaliação da Ordem Econômica (art. 170) e da Ordem Social (art. 193). Implicitamente, como forma de Justiça Distributiva, também aparece nas ordens para que o Estado erradique a pobreza e reduza as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III) e na indicação das prestações da Seguridade Social (art. 194, par. único, III).

Com o advento do pós-positivismo (ou neoconstitucionalismo), que atualmente já é quase uma unanimidade no Direito Constitucional brasileiro, supera-se a redução da justiça à lei formal, para incorporá-la abertamente também ao ordenamento, em especial o Constitucional. Além disso, dentro desta nova visão do Constitucionalismo, os princípios abertos também são normas obrigatórias. Com isso, os critérios de Justiça já não são algo externo ao sistema, mas sim internos e integrantes do ápice.





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Observações finais: Uma variante desta discussão é levantada por Amartya Sen, para quem em vez de se estudar uma Teoria da Justiça numa abordagem transcendental ("o que é uma sociedade justa?"), defende que se deve fazer uma abordagem comparativa, isto é, estudar "como reduzir as injustiças manifestas?". Em outro trabalho chamado "Por que Estudar Justiça?" (capítulo de livro que está no prelo), discuto o tema em co-autoria (Desirré Bollmann) abordando com mais profundidade a discussão em torno da proposta de Amartya Sen.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Círculos quadrados ?

Já se disse que o Direito pode transformar o preto em branco e o branco em preto.

Será mesmo ?

Poderia o Direito dizer que o círculo é um quadrado ?

Revogar a lei da gravidade (risos) ?

Um exemplo dado pela literatura como o de tornar círculos quadrados foi o ocorrido na África do Sul, durante o regime do Apartheid, quando eram proibidos os casamentos interraciais. Para viabilizar o seu casamento, um dos nubentes conseguiu, na Justiça, alterar sua qualificação, mudando da raça branca para a negra. A lei, então, alterou os efeitos jurídicos daquela qualificação civil.

Enquanto norma produzida no mundo das ideias dos homens a fim de controlar suas próprias condutas, a lei não altera, por si só, o mundo dos fatos, mas apenas, em certa medida, o comportamento das pessoas e, com isso, se for o caso, alterar os fatos. Impor sanções a condutas não desejadas ou dar incentivos para condutas desejadas poderá fazer com que, agindo desta ou daquela forma, as pessoas alterem, por sua vontade, a realidade.

Um exemplo deixa isso bem claro.

Imagine-se uma lei cujos únicos artigos fossem:
Art. 1o. Extingue-se o desemprego no Brasil.
Art. 2o. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Alguém tem alguma dúvida de que, no dia posterior à publicação, a lei simplesmente não surtiria efeito nenhum ?

A Lei poderia, sim, estudar o fenômeno econômico e criar as condições para que o desemprego diminuísse (redução dos tributos e encargos trabalhistas ? redução de taxa de juros ?) e, se realmente as condições da conduta das pessoas imposta pela lei corresponder à realidade econômica, então a lei poderá, neste caso, contribuir para a redução do desemprego.

É bem verdade que, em muitos casos, para poder simplificar as questões e viabilizar uma decisão, o Direito cria regras fundadas em ficções que fogem daquilo que é a realidade dos fatos.

Assim é que, por exemplo, um carro a 79 Km/h causará tantos danos num acidente de trânsito quanto um a 81 Km/h. O conhecimento do ilícito é o mesmo para quem tem 17 anos, 11 meses e 20 dias  de idade e quem tem 18 anos e 1 dia.

Creio, porém, que o tema é mais profundo do que se imagina e dou dois exemplos de casos que julguei.

Certa feita, julguei uma ação demolitória no qual a casa construída invadia poucos centímetros da faixa não edificável vizinha a uma BR. Ponderei, naquele caso, que o perigo era mínimo e não justificava a demolição. O Tribunal manteve a decisão.

Em outro caso, uma empresa pedia uma liminar contra a restrição a manobras para navios com até 250 metros de comprimento, alegando que suas embarcações tinham poucos metros a mais (salvo engano, 252 metros no total). Neguei o pedido porque, dentre outros argumentos, a informação técnica que estava no processo dizia que os dois metros excedentes ao limite de segurança eram relevantes, pois representavam um deslocamento maior do navio com influência na realização da curva de giro, gerando sérios riscos de acidente e também de afetar a captação de água para o município. Neste caso, a diferença, aparentemente irrisória, era importante e poderia ter efeitos práticos altamente lesivos.

A conclusão - ainda que temporária - é que a lei não pode, por si só, alterar a realidade dos fatos, mas pode contribuir para a sua alteração, seja incentivando ou vedando algumas condutas, seja atribuindo efeitos jurídicos diferentes da realidade; pode, ainda, reduzir a complexidade do exame da vida real para facilitar o trabalho do jurista criando ficções, mas, neste caso, sempre atento à realidade, para não construir um castelo jurídico sobre nuvens de realidade.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A "Hipótese Cínica"

Há alguns anos, enquanto redigia a minha Dissertação de Mestrado, que envolvia a ligação entre o valor Justiça e o Jurídico - por intermédio dos Princípios -, analisando um ramo específico do Direito (o Previdenciário), abordei, num dos sub-capítulos, a questão da legitimidade.

Para trabalhar o tema, entendi interessante tentar, na medida do possível, avaliar se era possível abordar a questão do ceticismo.

Para isso, desenvolvi a idéia da "Hipótese Cínica" (não sei se isso já foi usado antes, se foi, peço desculpas pela falta de originalidade).

A Hipótese Cínica é um modo de compreensão das relações sociais de poder que pode ser resumida no seguinte lema: “O poder basta em si mesmo. O Estado não é diferente de um bando de ladrões. As idéias de legitimidade do poder e da necessidade de submetê-lo a limites são tentativas ideológicas de mascarar a descrição da realidade. O discurso da Ética não leva a nenhum resultado útil por tentar amarrar a conduta humana a freios que não são naturais e que dependem da vontade de obedecer. Esta vontade de obedecer é uma mera vontade e, como tal, pode mudar. Por isso, não cabe à Ciência ou à Filosofia dizer como a conduta do governante deveria ser, mas sim dizer como ela realmente é. Disso decorre que a Constituição é somente uma folha de papel. Se as relações de poder de fato decidirem destruí-la  ou ignorá-la, o farão, expressa ou sub-repticiamente.”

Seria esta hipótese verdadeira ? Há alguma objeção possível a ela que não seja meramente valorativa, isto é, é possível recusar a hipótese cínica sem que se diga que “não concordo e por isso sou contra ela” ?

Creio que sim.

A resposta passa pela dissecação da relação entre Estado, Poder, Força e Legitimidade.

A primeira premissa é que historicamente nenhuma estrutura de poder consegue, a longo prazo, estabelecer-se e se manter unicamente pela força física (coação).

No início de uma comunidade política, o Poder se impõe como um fato: o fato da força (física ou de convencimento).

A manutenção do sistema de poder exige a criação de instituições (que podem ser simples, como uma tribo, ou complexas, como a sociedade contemporânea) que se mantém por um conjunto de regras, para si e para os seus integrantes.

O estabelecimento do Estado implica uma estratégia de manutenção dessa estrutura e, simultaneamente, de controle deste e por meio deste.

Este conjunto de regras, porém, não é aplicado só e somente só pela força. Basta ver que, no dia a dia, as pessoas obedecem a maior parte das regras (por exemplo: sinais de trânsito. A grande maioria para no sinal vermelho e espera o verde).

Há uma adesão, que será maior ou menor tanto pelo potencial de sanção (adesão forçada) quanto pelo sentimento de legitimidade destas regras (adesão voluntária).

Por isso, existe, por detrás de qualquer poder, uma condição de valores consensualmente aceitos que refletem interesses, aspirações e necessidades de uma comunidade com a qual o poder tem que se adequar.

Ao inserir esta variável da legitimidade, a relação entre Direito e Política se inverte: não é mais o poder político que produz o Direito, mas o Direito que justifica o poder político.

Justificada a existência do Estado pela necessidade de superação do Estado de natureza, definem-se estratégias para que os detentores do poder não abusem deste. Uma delas é a positivação de uma Democracia com respeito a direitos fundamentais, evitando-se a tirania da maioria; outra, a possibilidade (ainda que teórica) da Desobediência Civil.

Além delas, a institucionalização de um Estado social também é uma estratégia política para assegurar condições econômicas e sociais mínimas que permitam o desenvolvimento do modelo de cooperação.

A referência a um princípio de legitimação – como o do justo título do Contratualismo – opera diversas transformações: o poder de impor deveres em um direito de exigir condutas; a obediência muda para um dever de agir conforme a norma e a relação de força vira uma relação jurídica.

Portanto, o Direito deve prover uma justificativa para o uso do poder e qualquer teoria política do direito deve não só incluir o fundamento das regras jurídicas, mas também o fundamento da Força do Direito, isto é, do motivo porque o direito pode coagir.

Sem essa justificação, as divergências entre os membros de uma comunidade levariam não só à desobediência civil, mas também à própria desestruturação da sociedade.

Assim, é possível dizer que a ausência do sentimento de legitimidade do Estado e de suas normas pelos cidadãos implicaria o enfraquecimento da obrigação política e, no limite, a Desobediência Civil, rejeitando-se, pois, a hipótese cínica.

Essa rejeição implica reconhecer que o poder do Estado e do Direito não decorre apenas do uso da força, mas também, e principalmente, da sua capacidade de se apresentar como legítimo, construindo, simbolicamente, a sua observância.

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No meu livro "Previdência e Justiça: O Direito Previdenciário no Brasil sob o Enfoque da Teoria da Justiça de Aristóteles", publicado pela Juruá, escrevi sobre o tema com as devidas orientações metodológico-científicas. Retomei o tema, ainda superficialmente, no capítulo do livro "Desatando os nós do neoconstitucionalismo brasileiro", parte do livro HIROSE, Tadaaqui; GEBRAN NETO, João Pedro.. (Org.). Curso Modular de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito Editorial, 2010, v. , p. 111-162.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A Síndrome da "Tarrafa"

Existe uma prática não-jurídica que afeta o Direito que pode ser apelidada de “Síndrome da Tarrafa”.

Tal qual a rede que apanha um monte de peixe e outras coisas, a "Síndrome da Tarrafa" atua no Direito Disciplinar e na cultura em geral da seguinte forma: em vez de punir os indivíduos culpados por alguma conduta indevida, expede-se uma norma geral que prejudica todo mundo – e geralmente não respeitada pelos que já não faziam antes.

Em resumo: joga-se a rede para pegar todo mundo, indistintamente, como se todos fossem culpados.

Esta Síndrome é uma “doença” que ataca várias pessoas e instituições.

Há algum tempo, conversando com o filho de um amigo, notei que ele estava chateado com o colégio. Perguntei o motivo. Ele me disse que estava triste porque estava comportado na aula, mas ficou sem recreio. Não entendi e ele me explicou o "método" utilizado por sua professora para "controlar" a bagunça: ela escreve a palavra R-E-C-R-E-I-O no quadro e, se alguém estiver conversando na sala, ela pede silêncio, mas alguém não obedecer, ela risca uma letra com giz. Caso risque todas as letras, a sala inteira fica sem recreio. Eis um exemplo claro da "Síndrome da Tarrafa".

Outro exemplo recente é a discussão sobre proibição de remédios para emagrecimento sob o fundamento de que há abusos por alguns médicos. Ou seja, pelo fato de ALGUNS não obedecerem as regras técnicas para a prescrição do medicamento, os órgãos responsáveis vão proibir TODOS...

O problema da Síndrome da Tarrafa é que, além de atingir os inocentes, ela não ataca os verdadeiros culpados e ofende vários princípios lógico-jurídicos.

Se, por exemplo, existem membros de um grupo que não seguem determinada regra de conduta, a medida correta é abrir procedimento individualizado contra aquele(s) que tivesse(m) alguma acusação formal (representação, denúncia ou notícia), proporcionando a defesa, pois haverá situações justificáveis. Se for o caso, depois de oferecida a defesa e julgada procedente a denúncia/representação, deve-se, então, aplicar a punição proporcional.

Em vez disso, o que se vê, na prática, infelizmente, em vez da individualização da pena para aqueles que de fato ofendem alguma regra importante, os órgãos disciplinares acabam por "publicizando" a responsabilidade, e, em alguns casos, maculando a honra de todos que fazem parte do grupo - por conta da conduta de alguns poucos.

O que não dá é lançar uma nota de culpa para todos indistintamente, ferindo os princípios da presunção de inocência e do devido processo legal, dentre outros.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Fábrica de Decisões ?

Que tipo de atendimento você preferiria: uma consulta imediata de cinco minutos sem que o médico visse os seus exames e nem lhe ouvisse ou uma agendada para daqui a seis meses com um profissional que teria todo o tempo para o diagnóstico correto? A pressão por números e prazos está levando o Poder Judiciário para este tipo de dilema entre quantidade e qualidade. Não se despreza o valor que as técnicas de administração têm; ao contrário, reconhece-se que elas são necessárias e convenientes. Porém, a sua utilidade é para as atividades-meio (gerenciamento de pessoas e atividades burocráticas), mas não para a atividade-fim, pois esta exige lidar com o ser humano.

Decidir se alguém deve ser submetido ao cárcere exige muito cuidado e ponderação, que só podem ser alcançados com tempo para a adequada análise do caso. O mesmo se diga para decisões sobre meio ambiente, direitos do consumidor etc. É necessário tempo para as audiências de conciliação entre cônjuges que se separam, entre vizinhos, entre patrões e empregados e assim por diante. Todos estes processos exigem tomar em consideração os diversos lados da questão, o que não é possível se o juiz tem sob a sua guarda 9 mil processos, média nacional que é incompatível com a noção de qualidade.

Julgar uma vida não é o mesmo que fabricar salsichas. Enquanto a suprema corte dos EUA julga cerca de 100 processos por ano, a brasileira julga mais de 100 mil. Segundo o CNJ, em 2007 foram ajuizados mais de 16 milhões de casos novos. Algo está errado. A reflexão não é, portanto, se e quanto deve ser produzido, mas sim sobre que tipo de sociedade é a que vivemos em que a cada ano são ajuizados milhões de processos, cada um deles admitindo inúmeros recursos, sem nenhum custo. Equacionar este problema é uma das principais tarefas e ela não se resume a uma solução fácil que não passa pela desconsideração do ser humano que espera a tutela judicial.



(Originalmente publicado no Jornal Diário Catarinense, 21 mar. 2009, p. 10)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Grampeados e grampeadores.

A discussão atual nos meios de comunicação sobre as gravações telefônicas parece estar fora do foco daquilo que é o mais relevante. Condena-se o "uso exagerado" e a divulgação do conteúdo das gravações e grita-se por novas leis.

O problema é que três aspectos fundamentais são esquecidos.

Primeiro: já existe uma lei, que é boa e tem sido eficaz para o combate ao crime organizado. Falta, sim, sua execução adequada, para apurar quem vaza o que foi legalmente gravado e quem ilegalmente grava.

Segundo: o problema não são as interceptações dadas por ordens judiciais, mas sim as gravações clandestinas, feitas por "arapongas" e criminosos. As ordens judiciais são dadas em processos e se submetem ao controle dos tribunais e das partes; as clandestinas, não. Estas é que estão erradas, e não aquelas. É óbvio que a limitação das interceptações legais não limitará as ilegais. Como diz o ditado popular, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa totalmente diferente.

Terceiro: o fundamental é que aparentemente a discussão sobre os grampos faz esquecer a questão dos crimes que foram desvendados nas inúmeras operações, resultando em prisões, apreensão de drogas, fim de seqüestros e outros.

Ou seja, em vez de se punir os criminosos do colarinho branco e de se propor novas e melhores leis para combater a criminalidade, a discussão em Brasília é para criminalizar um dos importantes meios de prova, quando corretamente feita. Ao que parece, a impunidade agradece.

(Artigo originalmente publicado Diário Catarinense, p. 12 - 12, 07 set. 2008, três anos atrás, e continua atual...)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O (sempre) discutido conceito de Direito.

Ao ingressar no curso de Direito, logo nas primeiras aulas de Introdução, o aluno é perguntado sobre o “Conceito de Direito”. Em seguida, ele é apresentado aos conceitos de “Direito Objetivo”, “Direito Subjetivo”, “Direito Natural”, “Direito Positivo”, etc. Ao final, o professor aponta um conceito específico de Direito e o aluno, ainda iniciante, toma aquilo como verdade (ou pelo menos estuda para poder responder uma prova futura) e não pensará mais no tema.

Curiosamente, se esta mesma classe de alunos for perguntada ao final do seu curso qual é, em resumo, o conceito de Direito, haverá diversas respostas diferentes e alguns até nem saberão qual é a resposta correta. O mesmo acontecerá na Pós-Graduação (salvo se ela for extremamente dogmática e técnica).

Porém, se escolheram esta profissão, deveriam saber o básico sobre o que ela é.

Ou não ?

Dworkin, um dos principais filósofos/teóricos/pensadores contemporâneos do Direito, começa uma das suas principais obras dizendo justamente isso: muitas das discussões sobre o Direito são, na verdade, discussões sobre a concepção de Direito (este é o tal aguilhão semântico)

A verdade é que o conceito de Direito é uma questão (sempre) em disputa, pois nela está embutida uma pré-concepção ideológica sobre a postura do formulador do conceito.

Em outras palavras, a idéia de Direito é uma conseqüência dos valores possuídos por aquele que formula o conceito.

Historicamente, as duas primeiras (e antagônicas) respostas ao conceito de Direito eram, em breve resumo, a de que “O Direito é o que está na Lei”  (= Positivismo Jurídico) e a de que “O Direito é o justo, que pode, ou não, estar na Lei” (= Jusnaturalismo).

Posteriormente, uma terceira corrente passou a entender que “o Direito é o que o Judiciário diz que é” (Realismo Jurídico).

Todas estas correntes tem suas subdivisões, suas teorias, justificações e explicações mais ou menos detalhadas sobre o fenômeno jurídico. Para o Positivismo, por exemplo, afirma-se que o Direito decorre de decisão política fundamental que gera um ordenamento, prevendo, este mesmo conjunto de regras, uma regra para reconhecer o que é e o que não é Direito. O Jusnaturalismo, por outro lado, justifica as regras a partir de leis sobre o que é o Justo, para alguns, era o Divino, para outros, o decorrente da Razão.

Foram criticadas, também. Correntes teóricas apontaram, por exemplo, que o “Direito é o conjunto de regras definido arbitrariamente para exercer a função de cumprir fins políticos e econômicos do liberalismo” (= “Critical Legal Studies”).
           
Porém, se analisarmos com atenção a ação estratégica das partes num processo judicial concreto, podemos perceber que a concepção de direito será, em alguns casos, utilizado conforme o interesse da parte.

Ou seja, se as regras legais lhes forem favoráveis, a parte centrará sua argumentação nelas, assumindo, explícita ou implicitamente, o modelo positivista; caso contrário, se elas lhe são desfavoráveis, poderá fundar seu pedido em algum modelo de Justiça (incluindo Princípios abstratos) e, se este tiver alguma previsão constitucional, arguirá a inconstitucionalidade daquela norma.

Por isso, outro modelo mais recente pode ser visto como mais adequado a descrever a dinâmica dos processo judiciais: o “direito como argumentação”. A grande leitura para este modelo, embora ainda insuficiente, é a obra de Manuel Atienza, “El derecho como argumentación”, publicado pela editora Ariel, em Barcelona, 2006.

Com alguns acréscimos, escrevi sobre o tema, com mais profundidade no trabalho “Desatando os nós do neoconstitucionalismo brasileiro”, capítulo de livro HIROSE, Tadaaqui; GEBRAN NETO, João Pedro.. (Org.). Curso Modular de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito Editorial, 2010, p. 111-162.

Pretendo abordar o tema nos próximos “posts”, se Deus quiser e o tempo permitir (risos).

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De fato, posteriormente, escrevi outros posts. Abordei, por exemplo, a relação entre o Direito (visto do ponto de vista positivista) com a Moral e a Política à luz do modelo construído por Comte-Sponville (confira clicando aqui) e apresentei de forma mais profunda o modelo de Atienza do Direito como Argumentação ao discutir um artigo sobre a "Katchanga" (clique aqui para conferir o debate). E, ainda, apresentei uma fundamentação para a necessidade de legitimar o Direito, afastando a hipótese cínica (clique aqui para conferir), bem como a legitimação do direito (ou melhor: dever) do Estado de punir, para evitar a "desonestidade racional" (clique aqui para conferir), justificando a Sanção (característica do Direito) como instrumento de proteção aos honestos.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O STF em questão...

E quem controla os controladores?

A pergunta não é original, mas reflete uma preocupação para a sobrevivência da democracia, especialmente com a crescente participação do Supremo Tribunal Federal na vida dos cidadãos e sua a exposição diária na mídia.

Alguém terá que dar a última palavra nas discussões constitucionais; porém, este direito e dever implica que ele não seja cumulado com outros poderes e que haja uma postura discreta e reservada.

Algumas características do sistema brasileiro geram deturpações, que, se não são problemáticas agora, podem representar um perigo no futuro. A primeira é o excesso de atribuições ao STF, que, além de Corte Constitucional, também é instância para processar e julgar autoridades com foro privilegiado. Além do excesso de ações no STF, isso cria um poder adicional que é o de controlar os agentes dos demais poderes que deveriam fiscalizar aquele tribunal. A segunda é o caráter analítico da Constituição, que regula praticamente todos os aspectos da vida social e, por isso, permite que todo tipo de demanda vire questão constitucional, por mais insignificante que seja. A terceira é que se dá pouca deferência às questões decididas pelo Legislativo.

Evitar que o STF se transforme em um órgão centralizador dos três poderes implica modificar suas competências não-constitucionais, acabando com privilégio de foro para altas autoridades. Também é necessário alterar a sua composição e o seu procedimento de nomeação de ministros, prevendo que os cargos sejam destinados a membros oriundos das carreiras jurídicas (juízes, promotores e advogados) mediante listas formadas pelo Congresso Nacional, mediante prévia e exaustiva sabatina.

(Artigo publicado originalmente no Diário Catarinense, p. 16 - 16, 26 abr. 2009).

È interessante como o Constitucionalismo brasileiro não se atenta mais profundamente para as questões políticas "lato sensu", isto é, ao contrário do Direito Norte-Americano, em que é normal a discussão sobre a sua corte constitucional a partir do viés político, como agente, suas vicissitudes, tendências etc.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

As prisões nas operações policiais.

A distância entre o "juridiquês" e a língua do dia-a-dia gera questões e incompreensões por parte da população sobre as diversas prisões ocorridas nas operações policiais federais divulgadas na mídia. Fala-se "a polícia prende e a justiça solta", mas a verdade é que, diante da Constituição, a polícia só pode prender e soltar alguém se tiver ordem judicial, a não ser se flagrar um crime, senão comete abuso de autoridade. Se exceder à ordem, também. Todas as prisões são em cumprimento de ordens judiciais; logo, o correto é dizer que a "a justiça prende e a justiça solta".

Daí a segunda pergunta: por que todos os que foram presos estão soltos ? Na grande maioria das operações, as prisões noticiadas são as temporárias. Portanto, a resposta também é simples: como o nome já diz, a prisão temporária é temporária; logo, uma vez cumprida a sua finalidade (auxiliar nas investigações policiais ou no desbaratamento da quadrilha), o preso tem que ser solto, pois a regra constitucional, de acordo com STF, é que ninguém será considerado culpado até a sentença final, devendo responder em liberdade ao processo salvo se houver perigo real de fuga ou de ameaça às testemunhas, por exemplo.

Uma terceira questão é: por que aparentemente os ricos são soltos mais rapidamente? A resposta, neste caso, é mais complexa, mas um dos aspectos importantes é que falta uma efetiva implantação de defensorias públicas que possam dar às camadas mais pobres o atendimento jurídico de qualidade. Além disso, o combate aos "crimes de colarinho branco" exige aperfeiçoamento da legislação e das instituições de fiscalização como o Banco Central, agências reguladoras, CVM, tribunais de Contas e outros. A questão, então, é da alçada dos governos federal e estaduais, que têm a atribuição de implantar estes serviços, nos exatos termos da Constituição.
(Artigo publicado originalmente "As prisões e a PF" no Diário Catarinense, 23 jul. 2008, p. 14.)

Curioso como se passaram três anos desta publicação e o texto parece atual.
Infelizmente.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O Dia do Medo.


Conta-se que, em 1745, mesmo ameaçado pelo imperador alemão, que queria desmanchar um moinho que atrapalhava a paisagem do seu palácio, o velho moleiro recusou-se a entregar as suas terras, dizendo: “ainda há juízes em Berlim”.
No dia em que o juiz tiver medo de julgar conforme a sua consciência, não haverá quem viva tranquilo.

Se o juiz tiver medo de julgar por represália do Executivo ou do Legislativo, não haverá quem reconheça a responsabilidade do Estado por violar o direito alheio. Foi um juiz federal que, em 1978, durante a ditadura militar, condenou a União pela morte do jornalista Vladimir Herzog. Diariamente, centenas de segurados que tiveram seu direito violado pelo INSS são atendidos pelo Judiciário, que atua de forma imparcial para avaliar o direito a uma aposentadoria ou à sua revisão.

Se o juiz tiver medo de julgar por ser punido ou mesmo corrigido pelas instâncias superiores, não haverá quem reconheça novos direitos, como foram reconhecidos, de forma inédita, pelos juízes de primeiro instância, a indenização por dano moral, os direitos das companheiras antes da lei da união estável, o direito a medicamentos, inclusive para o tratamento de doenças como AIDS, os direitos dos casais homossexuais à pensão por morte, o assédio moral, dentre outros.

Se o juiz tiver medo de julgar por conta da repercussão na mídia, os inocentes proprietários do famoso caso “Escola Base”, injustamente acusados de abuso sexual de menores, teriam sido condenados. Aliás, o maior erro judiciário da história da humanidade foi produzido por um juiz que, diante do “clamor social”, lavou as mãos, condenou Jesus e soltou Barrabás.

Se o juiz tiver medo de julgar por ameaças de criminosos e por não haver proteção à sua integridade, então o crime terá vencido o Estado e o cidadão.

A liberdade de consciência do juiz não é para ele. É para a população. Sem ela, não há imparcialidade e nem direito que seja garantido ou há justiça que possa ser feita. Quando julga, o juiz não atende ao seu interesse. Ele atende a uma das partes que precisa daquela ordem para garantir o seu direito.

As recentes manifestações dos juízes federais, que culminaram com um dia de paralisação no dia 27 de abril, são reações às tentativas de intimidação, que não são contra eles, mas sim contra aqueles a quem atendem.

Ao contrário dos outros poderes, os juízes não têm armas. Não têm o poder econômico e não têm o costume de ir à mídia. O Judiciário é o mais fraco dos poderes e por isso é necessário resguardá-lo.

O Judiciário só tem a sua legitimidade constitucional e ela só pode ser alcançada se houver independência que assegure a imparcialidade. As ofensas a esta imparcialidade são ofensas aos cidadãos. Se estes não puderem recorrer a um juiz, não terão mais quem lhes atenda e, aí sim, será o dia do medo para todos.

(Artigo publicado originalmente no Jornal "Notícias do Dia", em 11/5/2011).
Alguns dias depois ele foi publicado no blog do Frederico Vasconcelos, o que gerou vários comentários - contra e a favor.

Tentei respondê-los da seguinte forma:

Originalmente ele foi escrito para ocupar reduzido espaço de um jornal impresso, daí a impossibilidade de abordar outros temas.

Por isso, também, a inviabilidade de citar os diversos casos de direitos reconhecidos pelo Judiciário e de arrolar os infelizes equívocos decorrentes do chamado clamor social.

Quanto à sensação de impunidade, talvez o Judiciário ainda não consiga expressar para a Sociedade o imenso volume de trabalho realizado diariamente. Pontuo, por exemplo, o número expressivo de condenações, inclusive por crimes tributários e de colarinho branco, que os Tribunais Federais julgam semanalmente em suas câmaras criminais, mas que não chegam ao conhecimento do grande público. O mesmo se dá em relação aos milhares de benefícios previdenciários e assistenciais, ações de concessão de medicamentos, indenizações por dano moral, ações de improbidade etc. que são julgados. Talvez a discrição exigida dos magistrados e a linguagem técnica dos julgados sejam explicações para a dificuldade que temos de levar ao público as nossas dificuldades.

No mais, é impossível ao Judiciário agradar a todos, seja porque ninguém até hoje conseguiu isso, seja porque, num processo, uma das partes irá sair descontente (quando não são ambas, quando ocorre o julgamento parcialmente improcedente). Além disso, o Juiz não pode correr atrás das provas e/ou dos fatos, e, muitas vezes, injustamente, responde pela culpa de serviço mal realizado que não é o seu.

Reconheço que erros são cometidos. Isso é próprio da natureza humana, que é suscetível a falhas.

Quando ocorrem, não são por vontade e existem remédios processuais para consertá-los (recursos). Os casos de má-fé são raros - e acontecem em qualquer profissão (ex. vi padres pedófilos, jornalista homicida, médico estuprador etc.) - e, quando ocorrem, são a exceção da exceção que, infelizmente, ganham mais notoriedade do que a imensa maioria de casos de juízes que trabalham para tentar fazer o melhor possível diante do volume de processos e do tamanho das expectativas que são levadas pelos cidadãos.