Postagens populares

quinta-feira, 22 de março de 2012

Verdade e "Verdades"

Como algo simples como saber se algo é verdade, ou não, pode se tornar tão complicado ?

Tanto na Filosofia quanto no Direito há diversas "verdades".

Na Filosofia, por exemplo, existem várias teorias diferentes sobre o que pode ser considerado verdade:
- Teoria da correspondência (ou evidência): “x” é verdadeiro se e somente se "x" corresponde a um fato que existe fora de nós;
- Teoria da coerência ou precisão: “x” é verdadeiro se e somente se “x” faz parte de um conjunto de crenças coerente internamente;
- Teoria pragmatista: “x” é verdadeiro se e somente se for útil acreditar em “x” ;
- Teoria pragmática ou da verificação ideal: “x” é verdadeiro se e somente se “x” é provável ou verificável em condições ideais;
- Teoria do consenso: "x" é verdadeiro se existir um acordo entre as pessoas sobre os princípios lógicos para apreender as coisas e do método utilizado para extrair conclusões que levam a dizer que "x" é verdadeiro;
- Teoria deflacionista: dizer “é verdade que X” é igual a dizer “X” e o uso da expressão "verdade" é apenas retórico.

Algumas destas correntes se confundem, mas é possível resumir a divergência entre [1] aqueles que acreditam que há algo fora de nós - a realidade objetiva - e que dizer ou pensar sobre este algo é verdadeiro quando este pensamento - realidade subjetiva - corresponder ao que conteúdo do que foi dito ou pensado; e os [2] que acreditam que, como a realidade externa só pode chegar a nós por meio de nossos sentidos (falíveis) e arrumados internamente pela nossa razão (usando a linguagem), não temos como dizer o que existe mesmo de fato fora de nós, mas apenas como nós compreendemos a realidade; por isso, a verdade é a coerência desta "arrumação" mental interna.

Do ponto de vista da Filosofia, porém, penso que existe uma diferença fundamental entre o plano dos fatos e o plano das ideias que se reflete no tipo de teoria da verdade aplicável [estou abstraindo uma questão mais teórica de que toda matéria seria energia e posso estar falando uma bobagem para a física, mas salvo engano, do que eu li até hoje, é possível sustentar que os átomos são grandes vazios ocupados por partículas ínfimas de energia].

No mundo dos fatos, a teoria da correspondência parece ser a mais adequada (ainda que ela seja sublimada pela questão da percepção e arrumação interna das ideias, como sugerido por Kant), pois existe um astro denominado Sol que exerce influência sobre a Terra e ela gira em torno daquele, ainda que no passado as pessoas acreditassem justamente no contrário disso . 

No mundo das ideias e dos juízos de valor, porém, esta teoria da correspondência é inaplicável.

Como dizer, por exemplo, que a Teoria do Contrato Social é a verdade ? Ou que a obra de Picasso é melhor do que a de Da Vinci ? Ou dizer que a lei X revogou a lei Y ? Nestes casos, não existe um objeto perceptível sobre o qual se possa fazer uma correspondência ou uma verificação para aferir se ele está de acordo com a teoria sobre ele lançada. Os argumentos em prol do contrato social, a beleza do quadro ou os artigos das leis não são objetos concretos fora de nós, mas sim objetos ideais elaborados pela nossa consciência/razão/linguagem. Se é possível falar em verdade no plano das ideias e juízos de valor, ele decorreria de alguma teoria do consenso ou da coerência interna, mas não de uma suposta correspondência. [Aliás, sobre o Contrato Social e a legitimidade do Poder, veja a minha "Hipótese Cínica"]

Como uma das tarefas do Direito é resolver um caso concreto (o juiz não pode dizer que não sabe qual é a verdade e nem qual a teoria correta; ele tem que decidir), a Teoria Jurídica tenta ser mais prática, no sentido de fugir de alguns destes questionamentos elaborando respostas prévias que facilitem o processo de decisão.

Para isso, o Direito dá parâmetros para o que se pode entender como verdade e acaba criando várias formas ou conceitos diferentes de "verdade": a verdade real (o que é de fato realidade); a verdade processual (a verdade que está no papel nos autos segundo as regras de produção de provas); a verdade sabida (antigo instituto do Direito Administrativo pelo qual um fato era dito verdadeiro pela simples afirmação da autoridade), as presunções, as verossimilhanças.... Existe inclusive uma gradação sucessiva entre o falso ou impossível, possível, provável (ou verossímil) e o verdadeiro (formal ou real).

Esta diferença já era notada quando da distinção clássica entre questões de fato e questões de direito (confira neste link um pouco sobre a discussão da inviabilidade e limites do Direito para alterar a realidade).

Para resolver os problemas das questões de fato, seguem-se as regras jurídicas sobre o direito das provas para obter a verdade (quais as provas admissíveis, quem deve produzir a prova, quando e como devem ser produzidas, etc).

Para os problemas das questões de direito, observam-se critérios lógicos elaborados pela doutrina da Teoria Geral do Direito e pelas normas (Direito Positivo - para mais detalhes sobre os conceitos de Direito, clique aqui), para os quais as partes terão que usar seus argumentos e o juiz dar uma decisão fundamentada (sem usar falácias da katchanga e nem argumentos denorex- risos).  Aliás, é justamente a ausência de critérios fixos e determinados - normas de sobredireito ou metacritérios determinísticos - sobre "como decidir" que de um lado impede a existência de uma única resposta correta aos problemas legais e de outro lado insere um necessário caráter subjetivo ao tema (para esta questão do decisionismo, vide minha resposta à resposta à Katchanga, que trata do caráter necessário da vontade no ato de decidir - o que não se confunde com arbitrariedade).

Porém nem tudo é tão simples (se é que existe alguma simplicidade nisso tudo).

Há algumas questões no Direito do dia-a-dia que mesclam fatos com objetos-ideais.

O maior exemplo disso é a análise do elemento subjetivo nos processos criminais.

Salvo se o réu confessar a sua real intenção (em juízo ou para pessoas que depois venham testemunhar), a conclusão do juiz sobre o elemento subjetivo jamais poderá ser a "verdade" real (no máximo, a formal), pois ninguém é dotado de poderes paranormais para saber se, ao disparar seu revólver contra a vítima, o réu queria matar, causar lesões ou apenas disparar uma arma de fogo que acidentalmente atingiu o ofendido.

São inúmeras as situações em que se exige a demonstração destes elementos que estão na "cabeça da pessoa". Por exemplo, no Direito Penal, a exclusão de criminalidade nos crimes contra a honra quando presente a intenção de narra (“animus narrandi”) que exclui o crime de calúnia (art. 138, do CP); o especial fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado no crime de Perigo de contágio de moléstia grave (art. 131, do CP); a intenção de lucro como condição da imposição da pena de multa no crime de favorecimento da prostituição (art. 228, §3º, do CP), a finalidade de cometer crimes no crime de quadrilha ou bando (art. 288, do CP). No Cível, o desvio de finalidade como hipótese de desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, do CC), a intenção manifesta de mudar o domicílio como condição para a transferência deste pela alteração de residência (art. 74, do CC), a intenção de não prejudicar outrem como condição para o exercício do direito de propriedade (art. 1228, §2º, do CC) e tantos outros.

Em todos estes casos, o juiz terá que "adivinhar" a intenção da pessoa a partir de elementos objetivos trazidos ao processo. Logo, usará de presunções (no sentido jurídico), argumentos lógicos, máximas de experiência do que normalmente ocorre (art. 335, do CPC), indícios (fatos provados cuja relação com o fato a ser provado permite concluir pela existência deste, art. 239, do CPP) e outros. O juiz poderá errar nesta "adivinhação" provocando uma situação de injustiça, mas, para isso, existem os recursos e as regras processuais de produção de prova que foram construídas com anos de história e experiências com erros e acertos.

Enfim, um tema que parece banal ao senso comum (a verdade), pode se mostrar extremamente complexa para quem resolve problematizá-lo filosofando. Entre este simples, que não serve para os argumentos jurídicos, e o complexo, que não permite chegar a um resultado rápido e prático, o Direito contenta-se (?) com reduções, regras, presunções e eventuais prejuízos a quem acreditava estar com "a verdade", mas não conseguiu prová-la.

Nenhum comentário:

Postar um comentário