Vivemos tempos de discussão bioética, de manipulação de embriões, parto terapêutico (ou aborto anencefálico?), comercialização (ou não) de órgãos, privatização de previdência e atendimento aos mais pobres, etc.
É praticamente certo que, um dia, a Ciência permitirá às pessoas escolher o gene dos filhos. É evidente também que, em termos exclusivamente econômicos/financeiros, é possível medir o custo de uma vida (Michael Sandel, em sua obra “Justiça” dá o exemplo das seguradoras norte-americanas e da indústria do tabagismo, que, de fato, fizeram tal medição).
Mas isso será correto ? Justo ? Jurídico ? Ético ?
Uma das melhores respostas – ou tentativa de resposta – que já vi é a do filósofo contemporâneo Andre Comte-Sponville, que, em sua obra “o Capitalismo é moral?”, traça um modelo de interdependência entre as esferas da [1] Economia/Ciência; [2] Direito/Política; [3] Moral e [4] Amor/Ética.
Segundo ele, a Ciência e a Economia não têm, em si, limites. Elas irão até onde puderem, sendo tudo uma questão de tempo. Para elas só existe o que é possível e o que ainda é impossível.
A limitação para o que a Ciência e a Economia podem ou não fazer tem de vir de fora: da Política/Direito (para uma diferença entre estes conceitos, clique aqui).
Esta segunda esfera é vista como a lógica entre o que é legal e o que é ilegal segundo o disposto pelo ordenamento, sendo este aquilo que é posto segundo o processo político, que pode, ou não, ser democrático (para outros conceitos mais amplos de Direito, confira-se outro texto meu).
Porém, mesmo esta segunda ordem também tem seus problemas. Ela pode levar tanto ao “canalha legalista”, que se atém ao direito para praticar injustiças, e a “tirania da maioria”, que pode oprimir as minorias eventuais (para este tema, vide o meu post sobre o dever de desagradar do Judiciário).
Portanto, apesar de esta ordem Direito/Política possuir alguns limites internos (a resistência da Desobediência Civil), ele ainda é frágil.
E ela ainda sofre uma limitação externa de uma terceira esfera: a Moral, pois mesmo o mais hábil governante não consegue ultrapassar barreiras que a moral da comunidade impõe como meios ou fins legítimos (aliás, vide, sobre isso, o meu post acerca da Hipótese Cínica - talvez um dos meus top 5 posts, risos).
Esta terceira ordem ainda sofre outra influência para Comte-Sponville, pois ele diferencia aquilo que se faz por um dever (a Moral) daquilo que é feito por amor (para ele, a Ética).
É esta quarta ordem que motiva o ser humano. O amor à liberdade, à verdade, à humanidade ou ao próximo.
Este modelo de esferas, ordens ou camadas que se limitam e se influenciam mutuamente é usado por Comte-Sponville para analisar outras questões.
Uma delas é a confusão entre estas esferas que leva a certas situações ridículas, como usar o critério de uma ordem para obter apreciação de outra (exemplo: o governante que quer ser amado pelo fato de ser poderoso, pois amor e política são esferas distintas; ou amar ser governante por esta única finalidade, o que também é uma confusão) ou a tirania da inversão das ordens (exemplo: a Economia querer que os padrões jurídico-políticos ou morais sejam dados a partir daquela).
Outra ponderação interessante dele é a da diferença de importância/relevância de cada ordem proporcional ao tamanho do grupo considerado e o paradoxo ou conflito entre estes interesses. Em outras palavras, para a coletividade, o avanço científico é fundamental (sem os antibióticos, por exemplo, a humanidade não teria a vida mais duradoura que tem hoje), mas para o indivíduo, em si, o amor é o mais importante, e entre estes extremos, há o conflito entre as ordens.
É possível criticar este modelo porque, na prática, algumas destas questões estão mais misturadas do que separadas (hoje o Direito usa expressamente critérios morais como Justiça Social, conforme já explicado em Posts anteriores: clique aqui), mas não se pode deixar de reconhecer que ele serve para compreender algumas situações problemáticas como a inversão, confusão e tirania entre esferas e o paradoxo do necessário conflito entre coletivo e individual (aliás, outro post anterior deu uma pincelada sobre o tema).
Não é um filme, mas a leitura vale um saco de pipocas, como diria um colega.
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