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quinta-feira, 22 de março de 2012

Verdade e "Verdades"

Como algo simples como saber se algo é verdade, ou não, pode se tornar tão complicado ?

Tanto na Filosofia quanto no Direito há diversas "verdades".

Na Filosofia, por exemplo, existem várias teorias diferentes sobre o que pode ser considerado verdade:
- Teoria da correspondência (ou evidência): “x” é verdadeiro se e somente se "x" corresponde a um fato que existe fora de nós;
- Teoria da coerência ou precisão: “x” é verdadeiro se e somente se “x” faz parte de um conjunto de crenças coerente internamente;
- Teoria pragmatista: “x” é verdadeiro se e somente se for útil acreditar em “x” ;
- Teoria pragmática ou da verificação ideal: “x” é verdadeiro se e somente se “x” é provável ou verificável em condições ideais;
- Teoria do consenso: "x" é verdadeiro se existir um acordo entre as pessoas sobre os princípios lógicos para apreender as coisas e do método utilizado para extrair conclusões que levam a dizer que "x" é verdadeiro;
- Teoria deflacionista: dizer “é verdade que X” é igual a dizer “X” e o uso da expressão "verdade" é apenas retórico.

Algumas destas correntes se confundem, mas é possível resumir a divergência entre [1] aqueles que acreditam que há algo fora de nós - a realidade objetiva - e que dizer ou pensar sobre este algo é verdadeiro quando este pensamento - realidade subjetiva - corresponder ao que conteúdo do que foi dito ou pensado; e os [2] que acreditam que, como a realidade externa só pode chegar a nós por meio de nossos sentidos (falíveis) e arrumados internamente pela nossa razão (usando a linguagem), não temos como dizer o que existe mesmo de fato fora de nós, mas apenas como nós compreendemos a realidade; por isso, a verdade é a coerência desta "arrumação" mental interna.

Do ponto de vista da Filosofia, porém, penso que existe uma diferença fundamental entre o plano dos fatos e o plano das ideias que se reflete no tipo de teoria da verdade aplicável [estou abstraindo uma questão mais teórica de que toda matéria seria energia e posso estar falando uma bobagem para a física, mas salvo engano, do que eu li até hoje, é possível sustentar que os átomos são grandes vazios ocupados por partículas ínfimas de energia].

No mundo dos fatos, a teoria da correspondência parece ser a mais adequada (ainda que ela seja sublimada pela questão da percepção e arrumação interna das ideias, como sugerido por Kant), pois existe um astro denominado Sol que exerce influência sobre a Terra e ela gira em torno daquele, ainda que no passado as pessoas acreditassem justamente no contrário disso . 

No mundo das ideias e dos juízos de valor, porém, esta teoria da correspondência é inaplicável.

Como dizer, por exemplo, que a Teoria do Contrato Social é a verdade ? Ou que a obra de Picasso é melhor do que a de Da Vinci ? Ou dizer que a lei X revogou a lei Y ? Nestes casos, não existe um objeto perceptível sobre o qual se possa fazer uma correspondência ou uma verificação para aferir se ele está de acordo com a teoria sobre ele lançada. Os argumentos em prol do contrato social, a beleza do quadro ou os artigos das leis não são objetos concretos fora de nós, mas sim objetos ideais elaborados pela nossa consciência/razão/linguagem. Se é possível falar em verdade no plano das ideias e juízos de valor, ele decorreria de alguma teoria do consenso ou da coerência interna, mas não de uma suposta correspondência. [Aliás, sobre o Contrato Social e a legitimidade do Poder, veja a minha "Hipótese Cínica"]

Como uma das tarefas do Direito é resolver um caso concreto (o juiz não pode dizer que não sabe qual é a verdade e nem qual a teoria correta; ele tem que decidir), a Teoria Jurídica tenta ser mais prática, no sentido de fugir de alguns destes questionamentos elaborando respostas prévias que facilitem o processo de decisão.

Para isso, o Direito dá parâmetros para o que se pode entender como verdade e acaba criando várias formas ou conceitos diferentes de "verdade": a verdade real (o que é de fato realidade); a verdade processual (a verdade que está no papel nos autos segundo as regras de produção de provas); a verdade sabida (antigo instituto do Direito Administrativo pelo qual um fato era dito verdadeiro pela simples afirmação da autoridade), as presunções, as verossimilhanças.... Existe inclusive uma gradação sucessiva entre o falso ou impossível, possível, provável (ou verossímil) e o verdadeiro (formal ou real).

Esta diferença já era notada quando da distinção clássica entre questões de fato e questões de direito (confira neste link um pouco sobre a discussão da inviabilidade e limites do Direito para alterar a realidade).

Para resolver os problemas das questões de fato, seguem-se as regras jurídicas sobre o direito das provas para obter a verdade (quais as provas admissíveis, quem deve produzir a prova, quando e como devem ser produzidas, etc).

Para os problemas das questões de direito, observam-se critérios lógicos elaborados pela doutrina da Teoria Geral do Direito e pelas normas (Direito Positivo - para mais detalhes sobre os conceitos de Direito, clique aqui), para os quais as partes terão que usar seus argumentos e o juiz dar uma decisão fundamentada (sem usar falácias da katchanga e nem argumentos denorex- risos).  Aliás, é justamente a ausência de critérios fixos e determinados - normas de sobredireito ou metacritérios determinísticos - sobre "como decidir" que de um lado impede a existência de uma única resposta correta aos problemas legais e de outro lado insere um necessário caráter subjetivo ao tema (para esta questão do decisionismo, vide minha resposta à resposta à Katchanga, que trata do caráter necessário da vontade no ato de decidir - o que não se confunde com arbitrariedade).

Porém nem tudo é tão simples (se é que existe alguma simplicidade nisso tudo).

Há algumas questões no Direito do dia-a-dia que mesclam fatos com objetos-ideais.

O maior exemplo disso é a análise do elemento subjetivo nos processos criminais.

Salvo se o réu confessar a sua real intenção (em juízo ou para pessoas que depois venham testemunhar), a conclusão do juiz sobre o elemento subjetivo jamais poderá ser a "verdade" real (no máximo, a formal), pois ninguém é dotado de poderes paranormais para saber se, ao disparar seu revólver contra a vítima, o réu queria matar, causar lesões ou apenas disparar uma arma de fogo que acidentalmente atingiu o ofendido.

São inúmeras as situações em que se exige a demonstração destes elementos que estão na "cabeça da pessoa". Por exemplo, no Direito Penal, a exclusão de criminalidade nos crimes contra a honra quando presente a intenção de narra (“animus narrandi”) que exclui o crime de calúnia (art. 138, do CP); o especial fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado no crime de Perigo de contágio de moléstia grave (art. 131, do CP); a intenção de lucro como condição da imposição da pena de multa no crime de favorecimento da prostituição (art. 228, §3º, do CP), a finalidade de cometer crimes no crime de quadrilha ou bando (art. 288, do CP). No Cível, o desvio de finalidade como hipótese de desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, do CC), a intenção manifesta de mudar o domicílio como condição para a transferência deste pela alteração de residência (art. 74, do CC), a intenção de não prejudicar outrem como condição para o exercício do direito de propriedade (art. 1228, §2º, do CC) e tantos outros.

Em todos estes casos, o juiz terá que "adivinhar" a intenção da pessoa a partir de elementos objetivos trazidos ao processo. Logo, usará de presunções (no sentido jurídico), argumentos lógicos, máximas de experiência do que normalmente ocorre (art. 335, do CPC), indícios (fatos provados cuja relação com o fato a ser provado permite concluir pela existência deste, art. 239, do CPP) e outros. O juiz poderá errar nesta "adivinhação" provocando uma situação de injustiça, mas, para isso, existem os recursos e as regras processuais de produção de prova que foram construídas com anos de história e experiências com erros e acertos.

Enfim, um tema que parece banal ao senso comum (a verdade), pode se mostrar extremamente complexa para quem resolve problematizá-lo filosofando. Entre este simples, que não serve para os argumentos jurídicos, e o complexo, que não permite chegar a um resultado rápido e prático, o Direito contenta-se (?) com reduções, regras, presunções e eventuais prejuízos a quem acreditava estar com "a verdade", mas não conseguiu prová-la.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Algumas considerações iniciais sobre o "plea bargain".

Normalmente não tenho colocado artigos de outros aqui no meu Blog, mas este artigo do New York Times vale a pena: "Go to Trial: Crash the Justice System". O autor do artigo é um advogado defensor dos direitos fundamentais (ou civil rights, na terminologia deles) e relata a sugestão de uma colega de uma reação de todos os réus para negarem fazer acordo e, com isso, levar à falência o sistema judicial dos E.U.A.

Num resumo muito apertado e trazendo para o linguajar brasileiro, o sistema norte-americano permite que o promotor ofereça um acordo ao indiciado e evitar o processo criminal e o julgamento. Embora varie um pouco em cada Estado, o sistema dá uma grande liberdade às partes sobre como pode ser o acordo, incluindo permitir que o promotor e o réu negociem que este admita culpa de um crime e cumpra a pena, sem julgamento. Há duas obrigações gerais: o promotor tem que apresentar ao réu as provas que possui e ambos têm que ir ao juiz, onde este perguntará ao réu se ele sabe exatamente o que está aceitando e se ele aceita de livre vontade.[Mais detalhes podem ser encontrados aqui]

No Brasil, o instituto que mais se aproxima disso é a Transação Penal prevista no art. 76, da Lei 9099/1995, que, na sua concepção original, era para ser quase a mesma coisa, mas em razão do entendimento do STF de que a aplicação da pena não pode ser feita sem um processo mais amplo, acabou por reduzir a Transação a algo muito similar à Suspensão Condicional do Processo, prevista no art. 89 da mesma lei - ou seja, o descumprimento do acordo não implica aplicação da pena, mas sim retomada da ação penal com oferecimento da denúncia.

Pois bem, o autor daquele artigo do NY Times apresenta duas faces do sistema de "Plea Bargaining" norte-americano, que, atualmente, representa algo em torno de 90 a 95 % dos casos levados às cortes criminais dos E.U.A. De um lado, o sistema permite o rápido julgamento e evita a falência do sistema criminal. De outro, porém, leva, em alguns casos, à assunção de culpa por pessoas inocentes para evitar o processo criminal e, neste caso, é relatado o exemplo de uma mãe de família que aceitou pagar uma multa e cumprir um "probation" (algo como o livramento condicional brasileiro), mas, em função do "etiquetamento social" e outras consequencias, acabou por perder o emprego, a residência e a guarda dos filhos.

Em palestra recente proferida a juízes federais da Quarta Região, foram apresentadas outras críticas a este sistema, pois, segundo outros artigos publicados nos E.U.A., há casos de “blefes” ou “ameaças” por parte dos Promotores, com provas que, às vezes, não tÊm, e, ainda, casos em que jogam com a opinião pública e com o desgaste de um processo criminal no qual os custos (os honorários advocatícios são muito altos) e o tempo do processo já são uma sanção, pelos quais, ainda que absolvido, o réu sai moral e psiquicamente arrasado; isso também ficou evidenciado pela descoberta de vários casos de inocentes que foram condenados (alguns no corredor da morte) cuja inocência só foi demonstrada com os avanços nos exames de DNA, posteriores aos casos em que houve os acordos (RAMOS, João Gualberto Garcez. Processo Penal Norte-Americano. In: CURRÍCULO PERMANENTE MÓDULO IV – DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. Florianópolis: Auditório da Justiça Federal, 21 out. 2011. Anotações do curso)

Enfim, se de um lado o sistema brasileiro tem os seus defeitos (excesso de formalismo e recursos nos ritos procedimentais, número elevado do feitos criminais que poderiam ser resolvidos mediante transações que, se descumpridas, pudessem ser executadas, duplicidade de benefícios processuais e materiais, etc), o norte-americando também apresenta uma face negativa.

Uma lição que se pode tirar dessas considerações é a aplicação do velho adágio aristotélico de que a virtude está no meio termo entre dois excessos. Talvez um sistema híbrido pudesse atender à eficiência do modelo norte-americano retirando seus defeitos, ou seja, permitir um "plea bargaining" com controle judicial para evitar concentração de poder nas mãos de um único órgão (Ministério Público) com reforço dos sistemas de defensoria dativa. Esta posição intermediária se colocaria entre os dois sistemas, obtendo as vantagens de um (resolução rápida de casos criminais, aplicável em quase 95 %) com as do outro (controle externo dos acordos).

domingo, 11 de março de 2012

Como deve ser um Processo ?

Todos criticam as leis processuais. Alguns acham que elas deveriam ser menos formais; outros, que elas deveriam ter menos recursos ou mais poderes ao juiz, menos poderes, mais juízes, menos juízes, conciliação, mediação etc.

Há um certo consenso de que o processo, tal como compreendido, deve ser reformado, mas ninguém parece concordar exatamente o quê deve ser reformado e nem como.

Vamos fazer então um pequeno “experimento” filosófico para imaginarmos como seria uma estrutura básica deste processo.

Imagine, caro leitor, que você está lendo este artigo e, de repente, a polícia entra no seu aposento, prende você, levando a uma prisão com a única informação: a sua pena é de três anos de prisão.

Isso seria um justo processo ?

Ainda que não se tenha um conceito exato de Justiça, o sentimento gerado por tal situação é claro e demonstra que o ato seria uma arbitrariedade que ofende qualquer parâmetro, do mais liberal ao mais conservador. Afinal, sequer sabe-se: por que você foi preso ?

Imaginemos, então, que, no ato da prisão, o policial informe: você ficará preso por três porque roubou uma pessoa ontem.

Agora, há um motivo, mas isso é suficiente para conferir Justiça à prisão ?

Agreguemos, então, um julgamento.

Você é levado a um juiz. Ele olha você e diz: “Não gostei de você. Vá para a cadeia por três anos”. Esta sentença não parece razoável em qualquer Estado contemporâneo.

Vamos trocá-la por uma decisão que pelo menos diga quais são os fatos pelos quais você foi condenado e por que você foi condenado. Ela poderia ser: “Ontem, às 14h30, na Rua Central, você, empunhando uma arma, subtraiu da vítima Fulano da Silva a quantia de R$ 2000,00. Logo, a sua pena é de seis anos, nos termos do art. 157, §2º, inc. I, do Código Penal, e depois de cumprir três anos, será posto em liberdade condicional”.

Neste ponto, já temos uma acusação e uma sentença (que remete a fatos e ao Direito, ainda que resumidamente).

Porém, o nosso processo ainda é insuficiente.

Quem sabe o direito à defesa não melhora esta estrutura básica ? A você é dado um advogado que fala que você é uma boa pessoa, que acompanha a Internet, que tem o signo de escorpião com ascendente em aquário e mais nada.

O processo ainda parece injusto.

Afinal: quem disse que você cometeu este roubo ? Isso tem que ser provado. E você não teria o direito a tentar provar que não estava naquele local naquele dia com alguma testemunha que confirme que você estava na casa de outra pessoa ? Como chamar esta testemunha, que pode não querer ir à Justiça ? Você não teria o direito de pedir que obrigassem este seu amigo a vir dizer a verdade ? E se alguém mentir – um inimigo seu ou alguém da polícia que queira confirmar a estória da prisão – , não deveria haver uma pena contra ele ?

Parece lógico e razoável, portanto, que o processo deva começar com alguma acusação formal contra você, dando-lhe um certo tempo para procurar um advogado, elaborar a defesa (ligada aos fatos e não algo apenas para constar), pedir que sejam ouvidas algumas testemunhas ou outras provas e que elas sejam submetidas a algum contraditório. Por fim, que o processo tenha uma sentença que mencione os fatos considerados verdadeiros e o direito aplicável. E, considerando que juízes, advogados e promotores são humanos e podem errar, que haja, ainda, o direito a pelo menos um recurso contra a sentença, para que outro juiz (ou juízes) re-examinem o processo para confirmar ou corrigir a sentença.

Acusação, direito à defesa, direito à prova, julgamento racional com base nos fatos e na lei e possibilidade de um recurso. Tudo isso configura uma espécie de “mínimo essencial do processo” sobre o qual poderíamos acrescentar outras camadas – que não são supérfluas, mas sim aprimoramentos adicionais, como uma estruturação de defensorias dativas, direito a recursos contra decisões que não sejam a sentença, etc.

Os aprimoramentos ao “mínimo essencial do processo” podem, ou não, ser considerados importantes pelo legislador, num juízo de valor político sobre a oportunidade e conveniência de medidas que possam de um lado retardar o processo, mas de outro, aprimorar a segurança do cidadão.

Se este “processo-modelo mínimo” pode ser aplicado às ações criminais, em que o réu pode perder a liberdade, também pode para as ações cíveis, em que o réu irá, no máximo, perder patrimônio. Se pode o mais, pode o menos.

Isso leva a várias outras perguntas.

Uma série delas indaga sobre as prioridades que a legislação processual deve atingir. Afinal, qual a finalidade do processo ? Ele tem que ser rápido ? Ou seguro ? O que é rapidez ? Um ano, dois anos, um dia, um mês ? Quanto ele deve custar ? Deve ser gratuito para todos ? A gratuidade não geraria milhares de ações (paradoxo da praia: ela é bela, porque é vazia e exclusiva, mas por ser bela, atrai gente e deixa de ser vazia) ? Quem deve ter prioridade ? Só o idoso ? O menor ? Réu preso ? Mandado de Segurança ? Direito à saúde ? Mas se tudo é prioritário, o resultado não seria que nada será prioritário ?

Superados estes questionamentos e definidas as finalidades, surgem as perguntas sobre o modo-de-ser do processo que melhor atenda aos objetivos: é necessário que todo processo possa subir até o STJ e o STF ? Brigas de vizinhos, ladrões de galinhas, discussões tributárias sobre valores inferiores a certa quantia e outros processos precisam mesmo encher as prateleiras dos tribunais superiores ? Será que são necessários recursos extras para que o juiz esclareça sua sentença (embargos), para unificar o entendimento no Brasil inteiro (Recursos Especial e Extraordinário no STJ e no STF) quando a realidade do interior do Amazonas é diferente do centro urbano de São Paulo ? Ou isso é característica de uma “Federação no papel, mas Estado Central na prática” ? Por que não estender o depósito recursal dos processos trabalhistas para os processos cíveis ? Será possível que os desembargadores nas capitais podem examinar melhor as provas do que o juiz de primeiro grau, que ouviu as testemunhas olho no olho e conhece melhor a realidade da comarca do interior onde proferida o julgamento ? Neste caso, não poderia o recurso ser apenas com relação às matérias de direito ou contra julgamentos totalmente contrários às provas dos autos (como no caso dos julgamentos do Júri popular), ou seja, se a interpretação dos fatos que o juiz se ampara nas provas dos autos e não é manifestamente errada, não seria mais razoável que fosse privilegiada a visão de quem teve contato imediato com as provas ?

Se olharmos com atenção a Constituição de 1988, o processo-modelo, simples, célere, praticamente oral, mas com observância de princípios (regras) fundamentais – contraditório, ampla defesa, assistência jurídica etc. – está previsto, em linhas gerais, no art. 98 e foi detalhado na Lei 9099/1995, ainda que, na prática, em alguns locais, ele tenha sido interpretado e aplicado como o antigo Código de Processo Civil e Penal. Além disso, há diversos países que praticam modelos processuais verdadeiramente orais, aplicando versões deste “processo-modelo mínimo essencial”.

O mais importante é decidir quem fará estas escolhas fundamentais sobre os valores que devem reger o processo e sobre a forma de ser dos ritos processuais. Tradicionalmente, as escolhas têm recaído apenas sobre o Legislativo a partir de estudos vindos da Academia e pressão de grupos organizados. Nem sempre a lei imaginada pelos professores da academia será a mais adequada, pois aquilo que parece ideal no papel, não se converte, na prática, em avanço real. Os grupos de pressão, como Advocacia e Tribunais Superiores (que tem mais força política dentro do Judiciário: clique aqui sobre o tema), têm experiência para apresentar, mas também defendem interesses seus. Não é por outro motivo que as propostas fundamentais apresentadas pela OAB foram as relacionadas aos honorários dos advogados (vide aquiaqui e aqui).  

Aliás, foram curiosas as reações à Proposta de Emenda Constitucional que acabaria com a prática das quatro instâncias recursais e daria uma celeridade ao sistema judiciário, pois as críticas, feitas por quem está imerso no mundo jurídico, venceram a pressão social pela celeridade. Para o tema, com as informações não apaixonadas pelo tema, veja-se esta notícia e este comentário.

O exame dos projetos de novos códigos processuais (CPC e CPP) em andamento no Congresso revelam “mais do mesmo” com pequenas alterações pontuais que não resolverão o problema do Judiciário e nem representam verdadeiras reformas processuais (que, aliás, vem sendo feitas desde 1995 e não alcançam os resultados prometidos justamente porque nada mudam de significativo). Isso não é algo novo, pois em 2006 já era previsto que as reformas então praticadas eram insuficientes (clique aqui para ler uma versão mais sucinta de artigo que publiquei na Revista do Processo)– o que, infelizmente, se confirmou, passados anos das reformas.

Talvez o ideal seja apresentar estas questões à Sociedade para que discuta, reflita e decida sobre estas escolhas, calibrando o ajuste fino entre segurança, eficiência e justiça nos procedimentos. Um instrumento interessante seria a aplicação de plebiscitos (art. 14, I, da Constituição), com consultas anteriores à elaboração dos Códigos.

Evidentemente que existem aspectos jurídicos que devem ser resguardados (tais como o “processo-modelo mínimo”) e outros que, por constituírem Direitos Fundamentais, não podem ser objeto de consulta plebiscitária (sobre o aspecto contramajoritário de certos temas constitucionais, veja-se post anterior meu que cita a questão).


A reflexão sobre estes temas permite vislumbrar que a nossa prática de elaboração e discussão de códigos, fechada nos grupos de interesse ligados ao mundo jurídico, não dialoga com os valores da Sociedade, levando a criar grandes distâncias entre aquilo que poderia ser um justo e rápido processo daquilo que de fato é o processo real. Talvez a exposição pública destes temas possa revelar quem está interessado em manter as coisas no estado em que estão e quem realmente quer celeridade e um processo penal ou civil que funcionem.

sábado, 3 de março de 2012

Argumentos "Denorex"

Sou juiz há dez anos e desde então a economia brasileira só cresceu; logo, eu sou responsável pelo crescimento do país. As galinhas são aves e aves voam, por isso as galinhas voam. Os fantasmas existem, pois ninguém provou que não.

Estes argumentos parecem corretos, certo ? Eles têm a aparência de corretos, estrutura correta, mas de alguma forma as conclusões não tem jeito de corretas.

Tal como na propaganda de antigamente do “Shampoo Denorex”, que tinha cheiro de remédio, embalagem de remédio, mas não era remédio (de onde surgiu o famoso bordão “parece, mas não é”), os argumentos do primeiro parágrafo parecem corretos, mas não são.

Evidentemente eu não sou responsável pelo crescimento econômico do país (embora até possa ter a minha quase ínfima parcela), as galinhas não voam e os fantasmas, se existem, ninguém sabe ao certo.

Eles são exemplos de Falácias, isto é, formas incorretas de se argumentar.

No primeiro caso, a “falsa causalidade”, onde se fatos totalmente independentes (eu ser juiz e o Brasil crescer) são apresentados conjuntamente, como se um fosse a causa do outro. [Aliás, não poderia ser o contrário, ou seja, eu sou juiz porque o Brasil cresceu ?]. É interessante como este tipo de “falsa relação de causa e efeito” pode ser notada no cotidiano: a venda que seria feita de qualquer forma, porque o cliente apareceu no local, mas que é atribuída à suposta capacidade de venda do vendedor.

Já abordei um tipo específico de falácia em outro “post” (sobre como falar uma mentira dizendo verdades, clique aqui).

As galinhas não voam, apesar de serem aves, e o argumento é falacioso porque foi tomada uma regra geral de um atributo (voar) de uma classe de elementos (as aves) como única possível para todos os elementos, quando alguns deles são exceção, já que este atributo (voar) é algo acidental, e não essencial (isto é: a ave é ave não porque voa, mas sim porque são animais vertebrados, bípedes, homeotérmicos, ovíparos, caracterizados principalmente por possuírem penas). O uso equivocado destes atributos acidentais não essenciais da classe é algo difícil de entender, mas que ocorre bastante no dia a dia, especialmente no Direito, com suas classificações, tipologias, regimes jurídicos etc.

Outro tipo interessante - e muito comum na vida forense - é o que tenta extrair a verdade a partir da referência ao autor: o "argumento de autoridade". Não é porque Fulano disse que a terra é quadrada que ela será quadrada, ainda que Fulano seja Doutor em Filosofia e autor de diversos livros sobre a impossibilidade geométrica de a Terra ser redonda. Infelizmente, porém, é comum o uso de citações de livros doutrinários, tanto no Direito quanto na Filosofia, para tentar corroborar um argumento, ainda que este seja falso.
Há um texto disponível na Internet que arrola 45 tipos de Falácias (clique aqui) e mostra como identificar cada um destes tipos de falácias e, mais importante, como contra-argumentar cada um deles.

Por exemplo tirado daquele texto: uma classe de falácias são as indutivas, isto é, as que partem de uma característica do raciocínio indutivo (passar das espécies para características gerais), usando-o de forma equivocada ao atribuir as propriedades de alguns elementos para todo o conjunto por conta de semelhanças entre apenas alguns deles (no fim deste Post há uma tabela que fiz com base no texto original). 
Vale a pena uma leitura mais aprofundada para ver os outros tipos e classes de falácias.

É uma pena que no curso de Direito estas questões lógicas não sejam ensinadas e treinadas com mais tempo, pois a prática jurídica do dia a dia convive com a argumentação e esta, no mais das vezes, é usada estrategicamente pelas partes, sem compromisso com o rigor lógico, mas sim com a busca retórica da vitória. 

Cabe ao juiz – no pouco tempo que tem para o crescente número de processos (vide o post sobre a comparação entre médicos e juízes, perguntando se somos Fábricas de decisões) - tentar identificar estas falácias e chegar a uma verdade (ainda que formal, e isto será tema de futuro Post, se o tempo deixar).

Tipo
Característica
Exemplo
Contra-argumento
- Generalização Precipitada
- A amostra é limitada e, apesar disso, é usada para apoiar uma conclusão tendenciosa;
- Fulano, paranaense, é bom de futebol; logo, os paranaenses são craques;
- Tenho seis amigos que concordam que a política econômica é recessiva; logo, ela é recessiva;
- mostrar que as dimensões da amostra são diferentes da população total;
- Amostra limitada
- Há diferenças relevantes entre a amostra e a população como um todo;
- as maçãs do topo da caixa estão boas; logo, as maçãs da caixa são boas;
- mostrar que as dimensões da amostra são diferentes da população total e perguntar se caso a amostra fosse outra o resultado seria o mesmo;
- Falsa analogia
- Numa analogia mostra-se, primeiro, que dois objetos são semelhantes em algumas das suas propriedades, para concluir se o primeiro tem uma propriedade X então o segundo também tem. Porém, a analogia falha quando os dois objetos diferem de tal modo que isso possa afetar a possibilidade de terem a mesma propriedade.
- “Governar um país é como gerir uma empresa. Assim, como a gestão de uma empresa responde pelo lucro dos seus acionistas, a governança também deve fazer o mesmo. O argumento é falho, pois os objetivos são muito diferentes e, por isso, têm de encontrar critérios diferentes.
- Mostrar que há uma diferença relevante entre os objetos que tornam a analogia insuficiente;
- Omissão de dados
- Dados importantes, que arruinariam um argumento indutivo, são excluídos.
- O Flamengo ganhará o próximo jogo, pois ganhou nove dos últimos dez jogos. (O argumento é falho quando omite que oito vitórias foram contra times de 2ª divisão e o próximo jogo será contra o atual campeão).
- Mostrar a informação que falta e argumentar que ela é capaz de alterar o resultado final;