Cada vez mais o Judiciário vem sendo chamado a resolver
tensões e problemas da Sociedade para os quais a Constituição prometeu
soluções, tais como a erradicação da pobreza (art. 3º, III), o desenvolvimento
nacional (art. 3º, II) e a promoção do bem a todos (art. 3º, IV). Porém, quais
os limites dessas intervenções ? O Judiciário pode resolver qualquer problema ?
Há choque com o princípio democrático ? Poderia haver uma exagerada invasão nas
atribuições que seriam do Executivo e ao Legislativo ? O Judiciário pode criar
Políticas Públicas ou apenas controlá-las ?
Há algum tempo atrás, como fruto do currículo permanente de
aprimoração dos Juízes Federais da Quarta Região, elaborei um artigo no qual
tentei apontar algumas direções para responder às perguntas acima indicadas,
que agora exponho, de forma resumida (e tentando fugir do Juridiquês) aqui
neste espaço virtual [para o artigo com as citações doutrinárias, remeto o
leitor a BOLLMANN, V. . Políticas Públicas, Direitos Fundamentais e os limites da atuação do Poder Judiciário. In: VAZ, Paulo Afonso Brum; SCHÄFER, Jairo Gilberto.. (Org.). Curso modular de Direito Constitucional. 1ed.Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, v. , p. 591-612.].
A minha proposta, que agora exponho resumida, é a de que, no
caso de políticas públicas que implicam ordens para que o Estado conceda prestações
positivas (obrigações de fazer, entregar coisa certa ou pagar), os juízes devem
observar dois enfoques: [1] o primeiro, de cunho substantivo, para garantir [1.a]
direitos fundamentais que asseguram um mínimo essencial ou [1.b] que decorram
diretamente da Constituição (ou seja, tenham os contornos claramente
estipulados no texto constitucional) e o segundo [2] de caráter procedimental, ou
seja, controlando direitos instrumentais decorrentes do procedimento de criação
e execução de políticas públicas.
Para chegar nesta proposta, parto do seguinte conjunto de perguntas, cada uma delas surgindo da resposta da anterior:
[a] Qual o conceito de Políticas públicas ?
[b] O Judiciário pode criar Políticas Públicas ou apenas
controlá-las ? Quais os limites dessas intervenções do Judiciário ? Poderia haver uma exagerada invasão nas atribuições que seriam do Executivo e ao Legislativo ?
[c] Qual a relação entre Direito e Política ?
[d] Como os direitos fundamentais podem justificar criação e
controle de políticas públicas pelo Judiciário?
[e] Qual seria o mínimo essencial que requerem prestações
estatais para dizer que a Dignidade da Pessoa Humana está atendida ?
Portanto, inicio com o conceito de Políticas
Públicas como um conjunto de medidas e atos administrativos estatais que,
mediante intervenção na sociedade, buscam atingir certos fins gerais ou
setoriais ligados aos direitos sociais, compreendendo não só a execução das
medidas em si, mas também o processo político de escolha das prioridades para o
governo, considerando serem limitados os recursos públicos.
Essa noção de Políticas Públicas está ligada a quatro elementos fundamentais: [1] a realização de metas ou fins; [2] a utilização de
meios ou instrumentos legais; e [3] a temporalidade, ou seja, o fato de a
atuação estatal prolongar-se no tempo, seja por períodos certos e determinados,
seja por prazos indetermináveis “a priori”; e [4] representarem escolhas políticas sobre como alocar recursos públicos, isto é, decidem como deve ser gasto o dinheiro arrecadado com impostos.
Por afetar os fins que são realizados e implicar
pronunciamentos sobre o teor de decisões coletivas vinculativas, o exame da
atuação judiciária no âmbito das políticas públicas tem passar pelo exame da
relação entre Política e Direito.
No período posterior às guerras mundiais, as Constituições passaram
a ter um papel fundamental de garantir direitos fundamentais e, a partir disso,
passaram também a redefinir o papel dos poderes do Estado, em especial com a evolução
do Estado de Bem-Estar, levando a um Judiciário cada vez mais atuante no jogo
político.
De fato, as Constituições incluíram conceitos jurídicos
indeterminados, princípios dirigentes dando metas e finalidades às ações de
Estado, ampliação da defesa dos direitos fundamentais e propiciaram a
massificação da tutela jurídica nos conflitos coletivos, transformando o
Judiciário em uma alternativa para o exercício do jogo político.
Este aumento do papel do Judiciário gerou diversas
indagações, tais como: qual a relação entre Direito e Política ? Como o Direito
pode constituir a Sociedade ? [Aliás, sobre a questão do conceito de Política, vide post anterior clicando aqui]
As respostas a essas perguntas têm sido classificadas em dois
eixos: procedimentalismo e substancialismo.
Para o Procedimentalismo, a Constituição não deveria
garantir uma suposta ordem de valores e o Judiciário não pode preencher o
espaço interpretativo com seus juízos morais ou políticos. Segundo esta
perspectiva, a Democracia não se funda em conteúdos substantivos, mas sim em
procedimentos que asseguram a formação democrática da opinião e da vontade, ou
seja, a Democracia é um conjunto de regras que permite a livre formação da das
decisões coletivas e o papel do Judiciário é o de assegurar a liberdade deste
processo.
Em posição contrária, no eixo substancialista, defende-se
que cabe ao Judiciário o papel de garantir direitos fundamentais mesmo contra
eventuais maiorias, cumprindo o contrato social dentro de um constitucionalismo
dirigente. No caso brasileiro, a vertente substancialista defende que a
desfiguração do poder legislativo e o baixa organização da Sociedade Civil
(decorrente de décadas de repressão ao associativismo) geraram a necessidade de
se utilizar o Judiciário e a Constituição como instrumentos para cumprir os
direitos fundamentais e sociais.
Porém, tanto procedimentalistas quanto substancialistas
reconhecem o valor intrínseco dos direitos fundamentais. Nem mesmo os
procedimentalistas afastam a necessidade de observar os direitos humanos
consagrados expressamente nas Constituições como fundamentais à Sociedade.
Logo, estes poderiam sugerir uma resposta conciliatória, já
que formam uma espécie de consenso mínimo sobre o qual não haveria oposição. Assim,
a questão é saber de que forma esses direitos
fundamentais podem servir de parâmetro para esta solução, pois podem servir de ponte
para ligar as duas visões aparentemente contrárias. Por isso a necessidade de
um exame desta temática, usando-a como limite e fundamento da própria atuação
judicial.
Ou seja, supera-se a questão "qual a relação entre Direito e Política?" para a pergunta "como os direitos fundamentais podem justificar criação e controle de políticas públicas pelo Judiciário?".
Os direitos fundamentais podem ser vistos sob dois ângulos: como direitos subjetivos individuais (interesses particulares
quando vistos sob o ângulo do cidadão) e como elementos objetivos fundamentais (decisões
tomadas pelo constituinte que valorizam aspectos da vida de cada um,
independente de quem seja, gerando, um conjunto de diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos que
retiram parte do poder do Estado sobre o que podem ou não exigir dos
indivíduos).
Dentre estes valores está a noção de “dignidade da pessoa
humana” (DPH), vista não apenas como a proteção da autonomia da vontade (impedindo que o homem seja tratado como um
objeto), mas também como elemento que justifica, legitima e dá sentido à
ordem jurídica como um todo.
Além da aproximação da dignidade da pessoa humana com a
proteção da autodeterminação da vontade, é possível ligá-la a uma teoria do
mínimo essencial. Nessa perspectiva, seria indigna a vida aquém de certos
patamares, ou seja, a dignidade da pessoa humana assegura [1] a proteção à
igualdade entre os homens, pois cada um deles tem igual dignidade, não podendo
ser vítima de discriminação desarrazoada ou arbitrária; [2] a vedação que um
ser humano seja tratado como objeto, degradando a sua condição; e [3] a
garantia de um patamar existencial mínimo, incluindo prestações que assegurem a
mais elementar subsistência.
Dentro dessa concepção da Dignidade da Pessoa Humana como
elemento que garante um mínimo essencial, abaixo do qual a vida seria indigna, seria
possível construir um critério de distinção do regime jurídico dos direitos
fundamentais que exigem uma prestação do Estado.
Ou seja, direitos sociais seriam divididos em dois grupos:
os [1] que garantem um mínimo existencial e os [2] que representam prestações
além deste mínimo. Aqueles, que garantem um mínimo existencial (entendido como o conjunto de condições
materiais básicas para a existência e manutenção de uma vida humana digna),
não se submetem à chamada reserva do possível e não precisam de lei para serem
exigíveis. Significa dizer que, na implantação destes direitos, o argumento da
falta de recursos só é válido se já alcançado o mínimo existencial, pois é a
partir deste patamar que se justificam escolhas; antes de alcançá-lo, não há opção
senão atender, em primeiro lugar, as necessidades vitais e essenciais.
Assim, neste tópico, é concluir que, inserido numa etapa
atual de desenvolvimento do Constitucionalismo, o Estado Democrático de Direito funda-se e legitima-se pela observância e efetivação dos direitos fundamentais que, independentemente de serem de defesa
ou de prestações, geram, àquele, um dever decorrente da sua eficácia dirigente.
A partir disso, assume importância a
dignidade da pessoa humana, como qualidade inerente a todos que legitima a
ordem jurídica, que implica, no seu núcleo, em assegurar a plenitude da
autodeterminação pessoal, impedindo que um ser humano seja utilizado como
objeto. Além deste sentido primário, atribui-se a este princípio também a
conseqüência de gerar deveres prestacionais que assegurem um mínimo essencial,
que pode ser vislumbrado em quatro vetores: educação fundamental, a saúde
básica, a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça. Dessa forma,
assume-se que tais prestações básicas reflitam, por si, direitos fundamentais
prestacionais diretamente decorrentes da Constituição.
Com isso o problema não é mais perguntar se o Judiciário
pode ou não dar um direito, mas sim indagar se esta prestação é, ou não, parte
do mínimo essencial diretamente decorrente da Constituição ou se ele é algo que
vai além deste mínimo e, por isso, exige lei específica.
Para responder esta questão, uma indagação se torna
necessária: o que seria este mínimo essencial ?
Com base no texto constitucional, a autora Ana Paula de
Barcelos trouxe um conjunto de quatro prestações básicas. Segundo ela, “Na linha do que se identificou no exame
sistemático da própria Carta de 1988, o mínimo existencial que ora se concebe é
composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a
educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso
à Justiça. [...] esses quatro pontos correspondem ao núcleo da dignidade da
pessoa humana que se reconhece eficácia jurídica positiva e, a fortiori, o
status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário”
(BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o
Princípio da Dignidade Humana, p. 258).
Porém, a questão das políticas públicas não se resume ao
reconhecimento da existência ou não de um direito essencial que pode ser
implementado diretamente pelo juiz, mas também ao controle das que já existem.
De fato, qualquer proposta de solução deve partir da definição
de matérias cujo objeto de exame pelo Judiciário é a identificação de
parâmetros de controle, isto é, [1] de o quê pode ser objeto de controle e [2] da
elaboração de instrumentos adequados para este controle.
A decisão judicial pode atuar tanto no exame da aplicação
dos critérios numéricos expressamente previstos na Constituição [tais como a
aplicação pela União de no mínimo dezoito por cento da receita resultante de
impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212)] quanto nos resultados
finais esperados da atuação estatal [exemplo: a previsão de educação
fundamental gratuita a toda a população (art. 208, I)] ou mesmo no controle dos
meios, isto é, das próprias Políticas Públicas escolhidas pelo Estado para
implementar os fins constitucionalmente previstos, sob a ótica da sua
eficiência para alcançar o resultado pretendido.
Além disso, legitimidade do controle judicial de Políticas Públicas
também pode ser classificada conforme o momento em que ele é exercido, ou seja,
formulação, execução e avaliação.
Por exemplo, ainda que se admita a vedação à criação judicial
de políticas não previstas expressamente na Constituição, o controle das que
foram criadas por lei pode ser feita, seja em relação aos meios utilizados,
seja em relação às finalidades pretendidas.
Assim, conjugando [a] a perspectiva de admissibilidade de
controle jurisdicional da criação de políticas públicas que resguarde uma
concepção procedimentalista da Constituição e [b] a fiscalização substancial
das políticas já criadas com [c] o reconhecimento da eficácia dirigente dos
direitos fundamentais e sua estrutura principialista, [d] a exigibilidade
imediata de prestações que representem salvaguarda do mínimo essencial e [e] os
parâmetros de controle diretos, finalísticos e de meios, surge a nossa
proposta:
[1] admissibilidade de criação judicial de políticas
públicas que sejam [1.1] medidas diretamente decorrentes do texto
constitucional (Ex: artigos 208, I; e 212, ambos da Constituição da República
de 1988) ou [1.2] novas políticas públicas necessárias para resguardar direitos
cuja efetivação configure um mínimo essencial;
[2] controle do procedimento utilizado pelo Estado
(Executivo ou Legislativo) na formulação da política pública, implicando
direitos de informação (para qualquer cidadão) e participação na formação da
vontade vinculante (especialmente para os grupos atingidos pela medida e para
aqueles que, embora excluídos, estejam em situação análoga);
[3] controle substancial das políticas públicas já
implantadas, seja para [3.1] inclusão de novos beneficiados, ofendidos pelo
princípio da igualdade, (que permite
atuação discriminatória, desde que o critério discriminador seja racionalmente
justificável quanto ao tratamento desigual que será dado e quanto aos fins
juridicamente constitucionalizados) ou para [3.2] alteração dos meios
utilizados para concretizá-la, observando, nesse caso, o princípio da
proporcionalidade e da razoabilidade.
Assim, a título exemplificativo, na primeira hipótese,
poderiam ser assegurados não só direitos a entidades de defesa de categorias
excluídas dos debates para formulação de políticas públicas, como também
determinar a sua inclusão em grupos de trabalho ligados aos ministérios que realizam
tais estudos.
Na segunda hipótese [1.2], se considerado o acesso à
justiça como uma parcela do mínimo essencial e a assistência por técnico
(advogado) como meio fundamental para tal direito [Tal como defendido por
BARCELLOS em A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o Princípio da
Dignidade Humana, p. 258], seria legítima a determinação judicial, em Ação
Civil Pública, para que o Estado adotasse alguma medida que propicie
atendimento jurídico aos que não tiverem renda para pagar por tal serviço. Os
meios para isso poderiam ser graduados – como ordem para ressarcimento de
despesas processuais assumidas por hipossuficiente – ou mesmo especificados –
criação de um planejamento no tempo para progressiva implantação de defensorias
públicas; o exame dessa graduação seguirá, necessariamente, os princípios da
razoabilidade e proporcionalidade.
Na hipótese [3.1], por exemplo, se implementada política
pública de habitação (direito não decorrente imediatamente do texto
constitucional) configurada por financiamento de construções populares a
pessoas de baixa renda, calculada per “capita”, seria possível o controle
judicial, mediante ações individuais ou coletivas, para calibrar os parâmetros
legais atinentes ao cálculo da faixa de renda, a fim de afastar eventuais
restrições desproporcionais.
A partir do texto apresentado, é possível traçar algumas
premissas que, embora não conclusivas no sentido de uma verdade inalcançável,
permitem supor que, ao determinar certos fins que restringem escolhas na formulação
e execução de Políticas Públicas, a eficácia dirigente da Constituição, especialmente
no que toca aos Direitos Fundamentais, tem papel relevante no embate entre
Direito e Política, mas não ilimitado. As limitações ao controle jurisdicional,
inerentes a um sistema de repartição de poderes, não impedem a atuação do Poder
Judiciário na criação ou escolha de Políticas Públicas, mas apenas a restringe
a certas condicionantes, tais como a formulação apenas para atender prestações
que garantam um mínimo essencial e a alterações que, atendendo controles
finalísticos, se sujeitam aos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade. Guarda-se, desse modo, uma certa deferência às escolhas
realizadas pelo Executivo e pelo Legislativo (cujo procedimento de formulação é
controlável), mas admite-se que o fruto dessa opção possa, em certos casos, ser
objeto de apreciação pelo Judiciário, quando provocado. Como resultado disso,
entende-se passível de atuação judicial para [1] controle procedimento
utilizado pelo Estado (Executivo ou Legislativo) na formulação da política
pública (implicando direitos de informação e participação); [2] criação de
políticas públicas que que
consubstanciem medidas diretamente decorrentes do texto constitucional ou necessárias para resguardar direitos
configuradores de um mínimo essencial; e [3] controle substancial das políticas
públicas já implantadas para inclusão de novos beneficiados ou alteração dos
meios utilizados para concretizá-la.
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