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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Políticas públicas, Direitos Fundamentais e os limites da atuação do Poder Judiciário


Cada vez mais o Judiciário vem sendo chamado a resolver tensões e problemas da Sociedade para os quais a Constituição prometeu soluções, tais como a erradicação da pobreza (art. 3º, III), o desenvolvimento nacional (art. 3º, II) e a promoção do bem a todos (art. 3º, IV). Porém, quais os limites dessas intervenções ? O Judiciário pode resolver qualquer problema ? Há choque com o princípio democrático ? Poderia haver uma exagerada invasão nas atribuições que seriam do Executivo e ao Legislativo ? O Judiciário pode criar Políticas Públicas ou apenas controlá-las ?

Há algum tempo atrás, como fruto do currículo permanente de aprimoração dos Juízes Federais da Quarta Região, elaborei um artigo no qual tentei apontar algumas direções para responder às perguntas acima indicadas, que agora exponho, de forma resumida (e tentando fugir do Juridiquês) aqui neste espaço virtual [para o artigo com as citações doutrinárias, remeto o leitor a BOLLMANN, V. . Políticas Públicas, Direitos Fundamentais e os limites da atuação do Poder Judiciário. In: VAZ, Paulo Afonso Brum; SCHÄFER, Jairo Gilberto.. (Org.). Curso modular de Direito Constitucional. 1ed.Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, v. , p. 591-612.].

A minha proposta, que agora exponho resumida, é a de que, no caso de políticas públicas que implicam ordens para que o Estado conceda prestações positivas (obrigações de fazer, entregar coisa certa ou pagar), os juízes devem observar dois enfoques: [1] o primeiro, de cunho substantivo, para garantir [1.a] direitos fundamentais que asseguram um mínimo essencial ou [1.b] que decorram diretamente da Constituição (ou seja, tenham os contornos claramente estipulados no texto constitucional) e o segundo [2] de caráter procedimental, ou seja, controlando direitos instrumentais decorrentes do procedimento de criação e execução de políticas públicas.

Para chegar nesta proposta, parto do seguinte conjunto de perguntas, cada uma delas surgindo da resposta da anterior:


[a] Qual o conceito de Políticas públicas ? 

[b] O Judiciário pode criar Políticas Públicas ou apenas controlá-las ? Quais os limites dessas intervenções do Judiciário ?  Poderia haver uma exagerada invasão nas atribuições que seriam do Executivo e ao Legislativo ?

[c] Qual a relação entre Direito e Política ?

[d] Como os direitos fundamentais podem justificar criação e controle de políticas públicas pelo Judiciário?

[e] Qual seria o mínimo essencial que requerem prestações estatais para dizer que a Dignidade da Pessoa Humana está atendida ?

Portanto, inicio com o conceito de Políticas Públicas como um conjunto de medidas e atos administrativos estatais que, mediante intervenção na sociedade, buscam atingir certos fins gerais ou setoriais ligados aos direitos sociais, compreendendo não só a execução das medidas em si, mas também o processo político de escolha das prioridades para o governo, considerando serem limitados os recursos públicos.

Essa noção de Políticas Públicas está ligada a quatro elementos fundamentais: [1] a realização de metas ou fins; [2] a utilização de meios ou instrumentos legais; e [3] a temporalidade, ou seja, o fato de a atuação estatal prolongar-se no tempo, seja por períodos certos e determinados, seja por prazos indetermináveis “a priori”; e [4] representarem escolhas políticas sobre como alocar recursos públicos, isto é, decidem como deve ser gasto o dinheiro arrecadado com impostos.

Por afetar os fins que são realizados e implicar pronunciamentos sobre o teor de decisões coletivas vinculativas, o exame da atuação judiciária no âmbito das políticas públicas tem passar pelo exame da relação entre Política e Direito.

No período posterior às guerras mundiais, as Constituições passaram a ter um papel fundamental de garantir direitos fundamentais e, a partir disso, passaram também a redefinir o papel dos poderes do Estado, em especial com a evolução do Estado de Bem-Estar, levando a um Judiciário cada vez mais atuante no jogo político.

De fato, as Constituições incluíram conceitos jurídicos indeterminados, princípios dirigentes dando metas e finalidades às ações de Estado, ampliação da defesa dos direitos fundamentais e propiciaram a massificação da tutela jurídica nos conflitos coletivos, transformando o Judiciário em uma alternativa para o exercício do jogo político.

Este aumento do papel do Judiciário gerou diversas indagações, tais como: qual a relação entre Direito e Política ? Como o Direito pode constituir a Sociedade ? [Aliás, sobre a questão do conceito de Política, vide post anterior clicando aqui]

As respostas a essas perguntas têm sido classificadas em dois eixos: procedimentalismo e substancialismo.

Para o Procedimentalismo, a Constituição não deveria garantir uma suposta ordem de valores e o Judiciário não pode preencher o espaço interpretativo com seus juízos morais ou políticos. Segundo esta perspectiva, a Democracia não se funda em conteúdos substantivos, mas sim em procedimentos que asseguram a formação democrática da opinião e da vontade, ou seja, a Democracia é um conjunto de regras que permite a livre formação da das decisões coletivas e o papel do Judiciário é o de assegurar a liberdade deste processo.

Em posição contrária, no eixo substancialista, defende-se que cabe ao Judiciário o papel de garantir direitos fundamentais mesmo contra eventuais maiorias, cumprindo o contrato social dentro de um constitucionalismo dirigente. No caso brasileiro, a vertente substancialista defende que a desfiguração do poder legislativo e o baixa organização da Sociedade Civil (decorrente de décadas de repressão ao associativismo) geraram a necessidade de se utilizar o Judiciário e a Constituição como instrumentos para cumprir os direitos fundamentais e sociais.

Porém, tanto procedimentalistas quanto substancialistas reconhecem o valor intrínseco dos direitos fundamentais. Nem mesmo os procedimentalistas afastam a necessidade de observar os direitos humanos consagrados expressamente nas Constituições como fundamentais à Sociedade.

Logo, estes poderiam sugerir uma resposta conciliatória, já que formam uma espécie de consenso mínimo sobre o qual não haveria oposição. Assim, a questão é saber de que forma esses direitos fundamentais podem servir de parâmetro para esta solução, pois podem servir de ponte para ligar as duas visões aparentemente contrárias. Por isso a necessidade de um exame desta temática, usando-a como limite e fundamento da própria atuação judicial.

Ou seja, supera-se a questão "qual a relação entre Direito e Política?" para a pergunta "como os direitos fundamentais podem justificar criação e controle de políticas públicas pelo Judiciário?".

Os direitos fundamentais podem ser vistos sob dois ângulos: como direitos subjetivos individuais (interesses particulares quando vistos sob o ângulo do cidadão) e como elementos objetivos fundamentais (decisões tomadas pelo constituinte que valorizam aspectos da vida de cada um, independente de quem seja, gerando, um conjunto de diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos que retiram parte do poder do Estado sobre o que podem ou não exigir dos indivíduos).

Dentre estes valores está a noção de “dignidade da pessoa humana” (DPH), vista não apenas como a proteção da autonomia da vontade (impedindo que o homem seja tratado como um objeto), mas também como elemento que justifica, legitima e dá sentido à ordem jurídica como um todo.

Além da aproximação da dignidade da pessoa humana com a proteção da autodeterminação da vontade, é possível ligá-la a uma teoria do mínimo essencial. Nessa perspectiva, seria indigna a vida aquém de certos patamares, ou seja, a dignidade da pessoa humana assegura [1] a proteção à igualdade entre os homens, pois cada um deles tem igual dignidade, não podendo ser vítima de discriminação desarrazoada ou arbitrária; [2] a vedação que um ser humano seja tratado como objeto, degradando a sua condição; e [3] a garantia de um patamar existencial mínimo, incluindo prestações que assegurem a mais elementar subsistência.

Dentro dessa concepção da Dignidade da Pessoa Humana como elemento que garante um mínimo essencial, abaixo do qual a vida seria indigna, seria possível construir um critério de distinção do regime jurídico dos direitos fundamentais que exigem uma prestação do Estado.

Ou seja, direitos sociais seriam divididos em dois grupos: os [1] que garantem um mínimo existencial e os [2] que representam prestações além deste mínimo. Aqueles, que garantem um mínimo existencial (entendido como o conjunto de condições materiais básicas para a existência e manutenção de uma vida humana digna), não se submetem à chamada reserva do possível e não precisam de lei para serem exigíveis. Significa dizer que, na implantação destes direitos, o argumento da falta de recursos só é válido se já alcançado o mínimo existencial, pois é a partir deste patamar que se justificam escolhas; antes de alcançá-lo, não há opção senão atender, em primeiro lugar, as necessidades vitais e essenciais.

Assim, neste tópico, é concluir que, inserido numa etapa atual de desenvolvimento do Constitucionalismo, o Estado Democrático de Direito funda-se e legitima-se pela observância e efetivação dos direitos fundamentais que, independentemente de serem de defesa ou de prestações, geram, àquele, um dever decorrente da sua eficácia dirigente. A partir disso, assume importância a dignidade da pessoa humana, como qualidade inerente a todos que legitima a ordem jurídica, que implica, no seu núcleo, em assegurar a plenitude da autodeterminação pessoal, impedindo que um ser humano seja utilizado como objeto. Além deste sentido primário, atribui-se a este princípio também a conseqüência de gerar deveres prestacionais que assegurem um mínimo essencial, que pode ser vislumbrado em quatro vetores: educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça. Dessa forma, assume-se que tais prestações básicas reflitam, por si, direitos fundamentais prestacionais diretamente decorrentes da Constituição.

Com isso o problema não é mais perguntar se o Judiciário pode ou não dar um direito, mas sim indagar se esta prestação é, ou não, parte do mínimo essencial diretamente decorrente da Constituição ou se ele é algo que vai além deste mínimo e, por isso, exige lei específica.

Para responder esta questão, uma indagação se torna necessária: o que seria este mínimo essencial ?

Com base no texto constitucional, a autora Ana Paula de Barcelos trouxe um conjunto de quatro prestações básicas. Segundo ela, “Na linha do que se identificou no exame sistemático da própria Carta de 1988, o mínimo existencial que ora se concebe é composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça. [...] esses quatro pontos correspondem ao núcleo da dignidade da pessoa humana que se reconhece eficácia jurídica positiva e, a fortiori, o status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário” (BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o Princípio da Dignidade Humana, p. 258).

Porém, a questão das políticas públicas não se resume ao reconhecimento da existência ou não de um direito essencial que pode ser implementado diretamente pelo juiz, mas também ao controle das que já existem.

De fato, qualquer proposta de solução deve partir da definição de matérias cujo objeto de exame pelo Judiciário é a identificação de parâmetros de controle, isto é, [1] de o quê pode ser objeto de controle e [2] da elaboração de instrumentos adequados para este controle.

A decisão judicial pode atuar tanto no exame da aplicação dos critérios numéricos expressamente previstos na Constituição [tais como a aplicação pela União de no mínimo dezoito por cento da receita resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212)] quanto nos resultados finais esperados da atuação estatal [exemplo: a previsão de educação fundamental gratuita a toda a população (art. 208, I)] ou mesmo no controle dos meios, isto é, das próprias Políticas Públicas escolhidas pelo Estado para implementar os fins constitucionalmente previstos, sob a ótica da sua eficiência para alcançar o resultado pretendido.

Além disso, legitimidade do controle judicial de Políticas Públicas também pode ser classificada conforme o momento em que ele é exercido, ou seja, formulação, execução e avaliação.

Por exemplo, ainda que se admita a vedação à criação judicial de políticas não previstas expressamente na Constituição, o controle das que foram criadas por lei pode ser feita, seja em relação aos meios utilizados, seja em relação às finalidades pretendidas.

Assim, conjugando [a] a perspectiva de admissibilidade de controle jurisdicional da criação de políticas públicas que resguarde uma concepção procedimentalista da Constituição e [b] a fiscalização substancial das políticas já criadas com [c] o reconhecimento da eficácia dirigente dos direitos fundamentais e sua estrutura principialista, [d] a exigibilidade imediata de prestações que representem salvaguarda do mínimo essencial e [e] os parâmetros de controle diretos, finalísticos e de meios, surge a nossa proposta:

[1] admissibilidade de criação judicial de políticas públicas que sejam [1.1] medidas diretamente decorrentes do texto constitucional (Ex: artigos 208, I; e 212, ambos da Constituição da República de 1988) ou [1.2] novas políticas públicas necessárias para resguardar direitos cuja efetivação configure um mínimo essencial;

[2] controle do procedimento utilizado pelo Estado (Executivo ou Legislativo) na formulação da política pública, implicando direitos de informação (para qualquer cidadão) e participação na formação da vontade vinculante (especialmente para os grupos atingidos pela medida e para aqueles que, embora excluídos, estejam em situação análoga);

[3] controle substancial das políticas públicas já implantadas, seja para [3.1] inclusão de novos beneficiados, ofendidos pelo princípio da igualdade, (que permite atuação discriminatória, desde que o critério discriminador seja racionalmente justificável quanto ao tratamento desigual que será dado e quanto aos fins juridicamente constitucionalizados) ou para [3.2] alteração dos meios utilizados para concretizá-la, observando, nesse caso, o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.

Assim, a título exemplificativo, na primeira hipótese, poderiam ser assegurados não só direitos a entidades de defesa de categorias excluídas dos debates para formulação de políticas públicas, como também determinar a sua inclusão em grupos de trabalho ligados aos ministérios que realizam tais estudos.

Na segunda hipótese [1.2], se considerado o acesso à justiça como uma parcela do mínimo essencial e a assistência por técnico (advogado) como meio fundamental para tal direito [Tal como defendido por BARCELLOS em A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o Princípio da Dignidade Humana, p. 258], seria legítima a determinação judicial, em Ação Civil Pública, para que o Estado adotasse alguma medida que propicie atendimento jurídico aos que não tiverem renda para pagar por tal serviço. Os meios para isso poderiam ser graduados – como ordem para ressarcimento de despesas processuais assumidas por hipossuficiente – ou mesmo especificados – criação de um planejamento no tempo para progressiva implantação de defensorias públicas; o exame dessa graduação seguirá, necessariamente, os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Na hipótese [3.1], por exemplo, se implementada política pública de habitação (direito não decorrente imediatamente do texto constitucional) configurada por financiamento de construções populares a pessoas de baixa renda, calculada per “capita”, seria possível o controle judicial, mediante ações individuais ou coletivas, para calibrar os parâmetros legais atinentes ao cálculo da faixa de renda, a fim de afastar eventuais restrições desproporcionais.

A partir do texto apresentado, é possível traçar algumas premissas que, embora não conclusivas no sentido de uma verdade inalcançável, permitem supor que, ao determinar certos fins que restringem escolhas na formulação e execução de Políticas Públicas, a eficácia dirigente da Constituição, especialmente no que toca aos Direitos Fundamentais, tem papel relevante no embate entre Direito e Política, mas não ilimitado. As limitações ao controle jurisdicional, inerentes a um sistema de repartição de poderes, não impedem a atuação do Poder Judiciário na criação ou escolha de Políticas Públicas, mas apenas a restringe a certas condicionantes, tais como a formulação apenas para atender prestações que garantam um mínimo essencial e a alterações que, atendendo controles finalísticos, se sujeitam aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Guarda-se, desse modo, uma certa deferência às escolhas realizadas pelo Executivo e pelo Legislativo (cujo procedimento de formulação é controlável), mas admite-se que o fruto dessa opção possa, em certos casos, ser objeto de apreciação pelo Judiciário, quando provocado. Como resultado disso, entende-se passível de atuação judicial para [1] controle procedimento utilizado pelo Estado (Executivo ou Legislativo) na formulação da política pública (implicando direitos de informação e participação); [2] criação de políticas públicas  que que consubstanciem medidas diretamente decorrentes do texto constitucional  ou necessárias para resguardar direitos configuradores de um mínimo essencial; e [3] controle substancial das políticas públicas já implantadas para inclusão de novos beneficiados ou alteração dos meios utilizados para concretizá-la.

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