Um colega me fez esta pergunta: quanto custa um olho ? Ele
estava com um processo no qual precisava decidir acerca do valor da indenização
pela perda da visão de um dos olhos.
Esta questão é bastante complexa e situações semelhantes são
enfrentadas diariamente pelos juízes no Brasil afora. Ela envolve várias outras
questões que precisam ser respondidas.
Por exemplo: o custo do olho é maior ou menor conforme a
pessoa use ele para trabalhar ?
Aqui vale uma distinção interessante entre os [1] danos
materiais (ou patrimoniais) e os [2] danos morais, que, às vezes, os leigos (e
a imprensa) não percebem, ou não conhecem.
[1] Os danos materiais são aqueles que envolvem o que a
pessoa perdeu em razão do acidente (por exemplo: o valor do carro num acidente
automobilístico) – chamados de [1.1] danos emergentes - ou que deixou
razoavelmente de receber (por exemplo: os dias de trabalho parados em razão da
hospitalização da vítima) – chamados de [1.2] lucros cessantes.
Os [2] danos morais são as ofensas aos direitos de
personalidade, que, por sua vez, são aqueles ligados à própria pessoa e suas
qualidades físicas, morais ou intelectuais (como honra, liberdade, etc) vistos como objeto de proteção do Direito. Os danos morais são
a chamada “dor na alma” que não se confunde com o patrimônio em si.
Em resumo, a distinção entre o dano patrimonial e o dano
moral é a natureza do objeto que foi atingido: um bem qualquer externo à
pessoa ou a própria pessoa incluindo suas qualidades.
O problema é que esta teoria
pode gerar situações nebulosas quando posta em prática.
Por exemplo: uma “top model” ou um relojoeiro que perde a
visão e o olho têm mais ou menos direito à indenização por dano moral do que
uma pessoa que não terá seu trabalho afetado ?
Se levada ao pé da letra a distinção, a resposta seria
negativa, pois o “custo” do prejuízo financeiro estaria ligada ao dano
patrimonial, cabendo ao profissional que perdeu a visão provar as despesas que
teve e aquilo que deixou de receber em razão do acidente.
O problema, porém, é que toda questão fácil é, na verdade,
uma questão difícil sobre a qual ainda não foram feitas as perguntas certas....
No caso, não seria razoável argumentar que uma “top model”,
um atleta profissional ou um relojoeiro, que usam a visão como instrumento de
trabalho, teriam um nível de aborrecimento maior do que um trabalhador para
quem a visão monocular seria, digamos, indiferente ? A preocupação maior com o
futuro não seria um parâmetro para ampliar o valor da indenização ?
Para tornar ainda mais complexa a questão, existem outras
perguntas que podem aumentar ou reduzir o valor da indenização.
Por exemplo: o dano moral deve servir de lição para que o
agressor não repita sua conduta ? Isto é: ele deve ter o caráter de “punitive
damages” ou não ? Para responder isso teríamos que responder outra coisa antes:
a indenização foca a lesão (e a restituição do que foi perdido) ou também deve
focar o agressor ? Um bilionário, como Eike Batista, deve pagar a mesma coisa
que um mendigo por um acidente de carro ?
Além disso, se a função da indenização for apenas restituir
a perda da pessoa – patrimonial ou moral – o valor não deveria ser o mesmo no
caso de o agressor ter agido com intenção (dolo) do que se ele tivesse apenas
se descuidado ou mesmo tentado evitar o acidente ?
Indo mais além: o dano estético também é indenizável ou está
abrangido pelo dano moral ? Se além da perda da visão houver a troca do olho
normal por um de vidro ou a permanência de uma cicatriz incurável, o dano moral
em si é maior, menor ou igual ? Seria o caso de um dano estético adicional ?
Enfim, estas perguntas – algumas respondidas pela doutrina e
pelos tribunais – são exemplo da árdua tarefa que os juízes têm no dia a dia
forense. Eu, por exemplo, quando tive que decidir a primeira ação de dano
moral, ao tentar arbitrar o valor da multa, depois de muito pensar, resolvi
marcar uma audiência para “sentir” o processo, ouvindo as partes e, quem sabe,
tentar a conciliação. O acordo não veio, mas a experiência de ouvir as partes –
e não apenas o papel dos autos – foi tão proveitosa que este virou um
procedimento padrão para mim: designar audiência de conciliação e instrução
para ouvir as partes, mesmo que elas não tivessem pedido a prova e nem arrolado
testemunhas. Um caso que parece simples muitas vezes é complexo e um caso que
parece complexo às vezes tem um ponto fundamental que, no fundo, é simples.
Por isso, parece-me, cada vez mais, que não ser correta a
aparente eleição da “celeridade” com prazos rápidos como valor absoluto para o
Judiciário. A Justiça, na maior parte das vezes, depende de muita reflexão e
ponderação [para o tema, escrevi há alguns anos um artigo de jornal que já
botei no blog, clique para ler sobre a "fábrica de decisões"].