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quarta-feira, 10 de junho de 2015

Das condições de aplicação do NCPC aos JEF

(Artigo originalmente publicado no site Consultor Jurídico: http://www.conjur.com.br/2015-mai-31/aplicar-cpc-juizados-especiais-federais-passa-condicoes)



A aprovação do novo Código de Processo Civil (Lei 13105/2015) traz várias inovações no Direito brasileiro, algumas positivas e outras negativas, sendo oportuno indagar quais serão seus efeitos não só no processo civil ordinário, mas também em outras áreas, tais como o processo administrativo, penal, trabalhista, etc. Questiona-se, então, quais serão as inovações e limites do novo CPC no âmbito dos Juizados Especiais Federais (JEF), instituídos pela Lei 10259/2001 (LJEF). Para isso, serão apresentadas as condições de sua aplicação nos JEF a partir da previsão constitucional destes e dos critérios técnicos de solução de aparentes antinomias entre as normas.
Os juizados especiais surgiram no Brasil como uma consequência das ondas renovatórias que visavam ampliação do acesso à Justiça pela transformação do processo em algo mais informal, menos custoso e, principalmente, rápido para resolver os problemas do cidadão. A primeira regulamentação deu-se com a Lei 7244/1984, criando os juizados de pequenas causas a partir do êxito das experiências em processos de pequenos valores realizadas na comarca de Rio Grande (RS).
Com a Constituição de 1988, houve a expressa previsão da necessidade de criação dos juizados especiais (CF, art. 98, I), regulamentados em 1995 pela Lei 9099/1995 (LJE). A Emenda Constitucional 22, de 1999, previu a possibilidade destes juizados também no âmbito da Justiça Federal, o que ocorreu com a Lei 10259/2001 (LJEF) [para uma análise mais aprofundada: BOLLMANN, Vilian; Juizados Especiais Federais, p. 3-10].
Este novo sistema foi criado com várias diferenças em relação ao sistema do CPC, beneficiando o cidadão. Por exemplo, a simplificação dos procedimentos para pagamentos devidos pela Fazenda Pública, mediante requisições de pequeno valor (autorizadas pela Emenda Constitucional 30, de 2000), os juizados itinerantes (que vão a locais onde o cidadão sequer tem documentos) e a autorização para acordos envolvendo a Fazenda Pública. Também foi importante a restrição aos recursos, ressalvando os casos de concessão de liminar ou contra a sentença.
Mesmo nesses casos, os processos não vão para um tribunal, mas sim para reunião de juízes de primeiro grau (Lei 9099/95, art. 41, §1º), que podem simplesmente manter a sentença pelos seus fundamentos (Lei 9099/95, art. 46), registrando por simples ata, sem a formalidade do acórdão e demais atos que provocam atrasos do processo ordinário.
Outras características jurídicas inovadoras foram relevantes como a ausência de reexame necessário e, principalmente, o procedimento de sobrestamento dos processos quando do recebimento de pedido de manifestação do Superior Tribunal de Justiça (em recurso similar ao Recurso Especial) ou de admissão de Recurso Extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal – que foram, em certa medida, o embrião do regime de recursos repetitivos depois estendidos para todo o processo ordinário.
Enquanto isso, no plano do processo civil ordinário, responsável por todas as demais demandas, ocorriam diversas alterações normativas no tempo, buscando dar mais celeridade. Essas alterações, já rotineiras, aceleraram-se a partir da Lei 8.952/1994, que instituiu a tutela antecipada, passando por várias leis até culminar na edição do novo Código de Processo Civil pela Lei 13.105, de 2015.
A ideia de reforma do Código de Processo Civil poderia ter sido uma oportunidade de reduzir e simplificar os vários procedimentos, padronizando rotinas com ganho de produtividade; porém, não só perdeu esta chance como criou mais recursos e etapas processuais. Poderia ter adotado soluções já exitosas, como a irrecorribilidade geral das decisões interlocutórias (exemplo dos processos trabalhistas e dos juizados) ou depósito recursal (para privilegiar aquele que teve seu direito violado), mas preferiu repetir o modelo do Código de 1973, já com 40 anos de idade.
É bom que se diga, porém, que só as leis não resolverão todos os problemas do processo civil, pois, além das questões culturais, há várias outras causas que impedem a jurisdição rápida. Cite-se, por exemplo, o excesso do número de processos, a falta de uma atuação diligente das agências e instâncias administrativas reguladoras dos setores econômicos em que existem os maiores litigantes, a ausência de real valorização das decisões de primeiro e segundo grau (com concentração e excesso de recursos nas instâncias superiores), o crescente número de repercussões gerais conhecidas e não julgadas, etc.
De qualquer sorte, aprovado o novo diploma legal, com os avanços possíveis e apesar de alguns retrocessos, este é o cenário sobre o qual os operadores jurídicos terão de se debruçar a fim de extrair os melhores resultados em prol do cidadão.
Aplicação do novo CPC no âmbito dos JEF
Sabe-se que, do ponto de vista de uma Teoria Geral do Direito, o ordenamento é uno, sendo formado por todas as leis, que geram, entre si, influências recíprocas. No caso de contradições aparentes, a doutrina elaborou diversos critérios de solução, tais como hierárquico, o temporal/cronológico, o de relação geral/especialidade. Traçou, também, padrões para resolver conflitos entre estes critérios.
A hipótese de antinomia real decorre do conflito entre critérios (conflito de 2° grau), em três casos: [1] critério cronológico versus critério hierárquico, tal como lei ordinária posterior à Constituição (prevalecendo a hierarquia já que a norma inferior não pode contrariar a superior); [2] especialidade versus cronológico, como no código posterior à lei especial — prevalecendo, então, a especialidade, já que se aplica o adágio de que a lei geral posterior não revoga as disposições contrárias; e [3] hierarquia versus especialidade, caso em que, segundo Bobbio, a solução dependerá da situação concreta, pois há dois valores em jogo, vale dizer, princípio da hierarquia versus o princípio da justiça. Por sempre prevalecerem em relação ao critério cronológico, os critérios de hierarquia e especialidade são chamados de critérios “fortes”. [BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico,p. 81-111].
Alguns desses critérios foram positivados expressamente pelo Decreto-Lei 4567/1942, hoje denominado de Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB). Assumem importância as suas previsões de que “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” (art. 2º, §1º) e “a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior” (art. 2º, §2º).
Diante da expressa previsão constitucional de critérios de estruturação e funcionamento dos Juizados Especiais, a regra geral de aplicação da legislação é a de uma relação de especialidade, em oposição às normas gerais do Código de Processo Civil.
Isso porque, diante da ordem traçada pelo art. 98 da Constituição, as leis que regularam os juizados estaduais e federais são específicas para dar conta dos critérios de oralidade, simplicidade e rapidez que devem ser observados. De fato, os juizados são um sistema que, embora seja parte da estrutura regular do Poder Judiciário, destinam-se, segundo o texto constitucional, a causas cíveis de menor complexidade e infrações de menor potencial ofensivo, que seguirão procedimento oral e sumaríssimo, com forma e estrutura de julgamento recursal diferenciado (turmas de juízes de primeiro grau).
Além de ser um microssistema próprio, a LJEF diz claramente que aos juizados “se aplica, no que não conflitar com esta Lei, o disposto na Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995” (LJEF, art. 1º), e esta, quanto aos processos cíveis, não menciona, em regra, outro diploma legal; ao contrário, traz, em si, toda a regulamentação necessária para a sua aplicação (como regime de provas, forma de peticionamento, modo de ser das audiências, etc). Como exceções, a Lei 9099/1995 prevê no seu processo de execução a aplicação do CPC “no que couber” (LJE, art. 52, “caput”), ou na extinção do processo, quando remete “além dos casos previstos em lei” (LJE, art. 51, “caput”). E, ainda, o art. 53, da LJE, que prevê aplicação do CPC em relação à execução de título executivo extrajudicial.
A cláusula “no que não conflitar com esta lei” deve ser interpretada como uma espécie de “filtragem” das normas da Lei 9099/95, pois só podem ser aplicadas nos juizados federais se forem compatíveis com as peculiaridades destes, tais como o fato de versarem sobre causas envolvendo a Fazenda Pública (o que era vedado nos juizados estaduais  até a edição da lei 12153/2009), dentre outros.
Ademais, o novo CPC não afirma a sua aplicabilidade com relação aos Juizados Especiais. Ao contrário: ele inicia indicando a supremacia da Constituição com relação ao trato do processo civil, observando-se as normas do Código (art. 1º) e, mais adiante, complementa apontando ser aplicável supletiva e subsidiariamente nos processos eleitorais, administrativos e trabalhistas (art. 15). Logo, embora podendo, o legislador em nenhum momento previu expressamente a sua aplicação os juizados.
Seria até possível argumentar que essas regras gerais já pressupõem sua aplicabilidade nos juizados. Porém, a leitura dos demais artigos do Código revela que, quando necessário, o legislador expressamente quis a aplicação de institutos específicos no âmbito dos juizados especiais. Por exemplo, nos artigos que tratam do cabimento do incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 985, I) e do incidente desconsideração de personalidade jurídica (art. 1.062). Aliás, ele alterou expressamente dispositivos da Lei 9099/1995 quanto a certos aspectos, o que reforça a conclusão de que a revogação parcial destes dispositivos não era automática (art. 1064 a 1066).
Apesar disso, é possível utilizar, em certos casos, a sistemática prevista no CPC, especialmente quanto a aspectos de ordem geral (exemplo: conceito de litispendência, distribuição do ônus da prova, julgamento antecipado da lide, etc.), desde que, obviamente, sejam compatíveis com os princípios norteadores dos juizados e não colidam com o que já está regrado pelas Leis 9099/1995, 10259/2001 e 12153/2009.
Diante da diferenciação constitucionalmente criada para os juizados e pela regra de especialidade para resolução de aparentes antinomias, o novo CPC, por ser um sistema geral não aplicável a casos especiais, só altera a legislação daqueles quando [a] expressamente determina sua aplicação ou [b] quando regula instituto jurídico essencial ou necessário para dispositivos daquelas leis. Em ambos os casos, por óbvio, desde que observadas as regras constitucionais de estruturação dos juizados, sob pena de invalidade.
Um ponto que merece ser lembrado, embora não seja possível esgotá-lo neste breve artigo, é que algumas das inovações do código são retrocessos tanto em relação ao CPC de 1973 quanto em relação às disposições da LJEF e da LJE.
É o caso, por exemplo, da introdução dos “embargos infringentes de ofício” disfarçado no artigo 942 como técnica de decisão (para a qual não basta o julgamento pelo juiz de primeiro grau e nem a confirmação por dois dos três desembargadores; agora, o processo terá de ser pausado para que se chamem outros dois desembargadores para que analisem tudo de novo).
Diante da cláusula geral da vedação do retrocesso, alterações como essa são passíveis de serem declaradas inconstitucionais não só por violarem o direito a uma razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII) quando implicarem formalismos ou etapas mais lentas do que as atuais, como também quando contrariarem as regras de estruturação dos juizados especiais previstas no art. 98, da Constituição.
Três premissas
Portanto, a partir do texto apresentado, é possível traçar algumas premissas que, embora não conclusivas no sentido de uma verdade inalcançável, permitem apontar algumas conclusões. Para entendimento da aplicação do novo CPC no âmbito dos Juizados Especiais, três premissas regem a matéria.
A primeira é a de que o novo Código de Processo Civil deve observar o texto constitucional, incluindo não só o direito à razoável duração do processo, como também a distinção estabelecida para a estrutura e princípios específicos dos juizados especiais, especialmente os critérios constitucionais de estruturação dos juizados e de rito oral, sumaríssimo para causas de menor complexidade.
A segunda, os juizados especiais federais são regidos por lei especial que só prevê aplicação supletiva da lei dos juizados especiais estaduais naquilo que for compatível.
A terceira é que, diante do critério da especialidade para resolução de antinomias, bem como pela ausência de expressa previsão geral no novo CPC (embora podendo e fazendo menção em dispositivos específicos, o legislador não previu a aplicação supletiva geral para os juizados – mesmo tendo previsto para os trabalhistas, por exemplo), ele só é aplicável nos juizados naquilo que expressamente prever ou naquilo que regulamentar instituto jurídico essencial ao funcionamento dos juizados não regulamentado nas leis específicas destes.
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Cláudio de Cicco e Maria Celeste C.J. Santos. São Paulo: Polis; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1989. 184 p.
BOLLMANN, Vilian. Juizados Especiais Federais: comentários à legislação de regência. São Paulo : Juarez de Oliveira, 2004.
_______. Mais do mesmo: reflexões sobre as reformas processuais. Revista de Processo. , v.137, p.153 - 170, 2006.
_______. Como deve ser um processo ? Disponível na Internet. URL:http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2012/03/18/contra-o-debate-fechado-sobre-novos-codigos/. Colhido em 25.3.2012.
_______. O Bom, o Mau e o Ineficaz. Disponível na Internet. URL:http://ajusticaodireitoealei.blogspot.com.br/2012/04/o-bom-o-mau-e-o-ineficaz.html. Colhido em 30.04.2012.

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