Voltando ao tema das Teorias da Justiça [para uma
introdução, vide um dos primeiros posts meus clicando aqui. Aliás, sobre o interesse no estudo da “Justiça”, vide este outro post], vale a pena falar um pouco sobre o
pensamento de John Rawls. [Para uma abordagem mais aprofundada, com as devidas
citações, indico o meu livro BOLLMANN, Vilian. revidência e Justiça: o Direito Previdenciário no
Brasil sob o enfoque da Teoria da Justiça de Aristóteles. Curitiba: Juruá, 2009;
ou então o original RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 2ª ed. Tradução de
Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002
ou o livro sobre o referido pensador OLIVEIRA, Nythamar de. Rawls. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 74 p.]
A “Justiça como Eqüidade” é a Teoria da Justiça de John
Rawls sobre a qual gira boa parte das discussões da filosofia política
contemporânea, especialmente quanto ao tema da desigualdade ou distribuição de
renda.
Para abordar este tema, vou tentar responder rapidamente a
três questões. O que legitimaria ou fundamentaria os princípios de justiça que
ele apontou ? Qual o pensamento de Rawls ? Quais as principais críticas que se
pode fazer ao pensamento de Rawls ?
Comecemos pela origem ou tentativa de explicação de onde
surgiriam os princípios de ação que dão os contornos à idéia de Justiça de
Rawls.
Rawls constrói os princípios de Justiça a partir de uma
situação imaginária chamada de “Posição Original”. Ela é um exercício criativo
no qual Rawls imagina como as pessoas escolheriam as regras sobre a Sociedade
se estas mesmas pessoas fossem almas desencarnadas, racionais, mas fora de
qualquer corpo físico e não soubessem quais são as suas habilidades e
capacidades e nem quais habilidades são desejáveis no mundo. Esta situação
hipotética seria mais ou menos como se as almas dos futuros recém-nascidos
estivessem numa sala de espera e discutissem entre si quais seriam as regras
aceitáveis para o mundo para o qual irão. Em outras palavras, as pessoas
estariam sob um véu de ignorância e não saberiam quais são as suas predisposições
naturais e morais. Ou seja: formariam um consenso e escolheriam princípios de
justiça abstraindo dos recursos, vantagens e desvantagens concretas
Para Rawls, eles chegariam a acordo sobre como fazer uma estrutura básica da Sociedade. Mesmo que
cada um estivesse interessado em promover os seus próprios interesses, todos
eles aceitariam a igualdade como norma para definir a sua associação.
Portanto, respondendo à primeira pergunta, Rawls legitima e
fundamenta os princípios que exporá em sua obra sob duas premissas
fundamentais: a primeira, explícita, a de que o seres são racionais e motivados
por seus próprios interesses (independente de quais sejam e de se eles
realmente sabem quais são ou serão estes interesses), a segunda, não tão
explícita, a de que todos aceitam o postulado da igualdade, ainda que para não
serem prejudicados.
Logo, o importante não discutir se esta situação imaginária
da “posição original” é ou não possível,
mas sim discutir se o mundo real pode construir princípios fundados na
igualdade e no interesse próprio de cada um (que é o de ter mais bens sociais
dos que os outros). E mais: saber se, aceitas estas premissas, estes postulados
levariam, ou não, aos princípios de Rawls.
Passemos então à segunda pergunta: quais os princípios de
Justiça sugeridos por Rawls ?
Para Rawls, os
princípios decorrem de uma visão mais geral na qual os valores sociais da
liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e auto-estima devem ser distribuídos
igualmente, salvo se alguma desigualdade for benéfica para todos. Ou seja, a
injustiça seria uma desigualdade que não beneficia a todos .
A partir daí, Rawls formula a versão inicial de seus
princípios de justiça:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) ordenadas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos .
O primeiro princípio leva a uma igualdade de liberdades –
que, como vimos, é um pressuposto teórico de Rawls.
O segundo princípio é o chamado Princípio da Diferença. Ele
é o segundo em ordem a ser atendido. Na sua versão inicial ele tem a seguinte
expressão: “as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal
modo que sejam ao mesmo tempo (a) ordenadas como vantajosas para todos dentro
dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a
todos”. Rawls aponta que pelo menos duas expressões utilizadas (“vantajosas
para todos” e “igualmente abertas”) são ambíguas, cada uma gerando duas
interpretações – e isto consumiria várias páginas aqui do Post (remeto os
interessados às obras acima citadas para maiores detalhes).
O importante e crucial é que Rawls apresenta quatro
possibilidades de se entender o Princípio da Diferença e, após discorrer sobre
as diferenças entre a “eficiência” e a “equidade”, ele argumenta que cada
indivíduo, preferindo ter mais bens do que menos, acharia sensato iniciar a
distribuição dos bens de forma igual para todos, evitando, assim, ficar com
menos; mas, em seguida, como as desigualdades são inerentes às comunidades (seja
em função das diferenças de capacidades, seja diante da necessidade de
maximizar a eficiência das estruturas econômicas e sociais), prevendo que elas
ocorrerão, as pessoas exerceriam uma espécie de antecipação do direito de veto
às situações que implicariam seus prejuízos e incluem o segundo princípio, com
a seguinte redação:
“Segundo Princípio
As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo:
(a) tragam maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo as restrições do princípio da poupança justa, e
(b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades.
Primeira Regra de Prioridade (A Prioridade da Liberdade)
Os princípios de justiça devem ser classificados em ordem lexical e, portanto, as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da liberdade. Existem dois casos: (a) uma redução da liberdade deve fortalecer o sistema total das liberdades partilhadas por todos; (b) uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm liberdade menor.
Segunda Regra de Prioridade (A Prioridade da Justiça sobre a Eficiência e sobre o Bem-Estar)
O segundo princípio de justiça é lexicamente anterior ao princípio da eficiência e ao princípio da maximização da soma de vantagens; e a igualdade eqüitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença. Existem dois casos: (a) uma desigualdade de oportunidades deve aumentar as oportunidades daqueles que têm uma oportunidade menor; (b) uma taxa excessiva de poupança deve, avaliados todos os fatores, tudo é somado, mitigar as dificuldades dos que carregam esse fardo”.
Quais seriam as críticas possíveis para estes princípios ?
A primeira é que eles partem de pressupostos que não
necessariamente são universais (igualdade e liberdade), pois há sociedades
contemporâneas que talvez privilegiem outros valores sobre estes (o coletivo ?
a religião ?).
Vencida esta crítica, a segunda é que a sua teoria não é
para ação das pessoas no seu dia a dia, mas sim para que sejam criadas e avaliadas as instituições políticas e sociais.
Há um terceiro tipo de crítica que o próprio Rawls responde:
são aqueles que opõem valores éticos mínimos como a dignidade da pessoa humana,
que, segundo os críticos, deveriam ser observados. Porém, Rawls sustenta que, na
posição original, as pessoas não teriam ainda senso moral quanto a qual seriam
os seus objetivos. Além disso, ele evitou utilizar princípios que poderiam ser
contestados, recusando outros valores. Porém, ele aponta que, embora os
princípios de justiça não sejam fundamentados na dignidade da pessoa, eles
servem para interpretá-la, já que estaria implícita na ordenação lexical
daqueles.
Um quarto tipo de crítica tem como objeto a situação da
posição original, seja porque é uma uma situação puramente hipotética utilizada
por Rawls como equivalente ao Estado de Natureza, seja porque ela parte de
alguns pressupostos de igualdade entre as pessoas e de um processo de escolha democrático
e com chances iguais para todos. Esta crítica é parcial, pois a posição
original é um argumento instrumental desnecessário, já que a estrutura dos
princípios de justiça elaborados por Rawls seriam uma decorrência necessária da
racionalidade. Apesar disso, outras circunstâncias, situações e problemas
específicos podem levar a outras teorias da justiça decorrentes da
racionalidade; ou seja, não é evidente que dessa posição original de Rawls surgiriam os
princípios por ele deduzidos. A escolha dos princípios decorrentes da Posição
original dependem de fatores políticos (como a sociedade funcionaria) e da
ideologia do teórico (especialmente sobre a sua concepção acerca da psicologia
humana). Assim, conforme os valores do autor, a posição original poderia gerar resultados
diferentes, surgindo, por exemplo, o Estado Mínimo (Nozick), o Utilitarismo, o
Seguro de saúde e social (Dworkin) ou a anarquia (Robert Paul Wolff).
Um quinto tipo de crítica é o fato de que uma teoria “ex
ante” aplicável a sujeitos abstratos não representa uma teoria da justiça “ex
post” que seria tomada por sujeitos concretos e reais, até porque as escolhas e
julgamentos racionais não podem ser feitos por quem ignora a
existência dos demais, como se fossem “zumbis egoístas”.
De qualquer sorte, historicamente falando, a obra de Rawls
fez renascer o interesse da Filosofia Política sobre a questão da Justiça e
suscitou diversos debates, tornando mais claros os argumentos em prol ou contra
certas visões de sociedade.