(publicado originalmente no site Consultor Jurídico, em 2/9/2014, e no Blog do jornalista da Folha de São Paulo, Frederico Vasconcelos, em 26/08/2014.)
Prepare-se leitor que algum dia vier a precisar do Judiciário para restaurar um direito violado por uma operadora de telefonia, um banco, um plano de saúde ou alguém que lhe provocar um acidente de trânsito ou qualquer tipo de dano. Esqueçam a redução do número de recursos. Esqueçam, também, medidas mais duras contra aqueles que atrasam o processo. O projeto de novo Código de Processo Civil não traz nada disso. Aguardando a votação no Senado Federal das alterações trazidas pela Câmara dos Deputados, o substitutivo do PLS 166, de 2010, consegue a proeza de não só evitar mudanças substanciais no modo de ser dos rituais já caducos, como também traz inovações bisonhas e ressuscita antigas práticas que só retardam a marcha dos processos. Fugindo do juridiquês, para que o leigo possa entender o que está em gestação, o exame do PLS, na sua redação atual, mostra que serão mantidos os recursos que já existem e também criados novos casos, seja para ampliar os embargos de declaração, seja pela introdução de figuras curiosas.
A ideia de reforma do Código de Processo Civil poderia ter sido uma oportunidade de reduzir os vários procedimentos existentes e simplificá-los para três (um individual, com rito semelhante ao dos juizados especiais, um coletivo e um sumário documental, como o do mandado de segurança), padronizando rotinas com ganho de produtividade; porém, não só perdeu esta chance como manteve vários procedimentos especiais. Poderia ter adotado soluções já exitosas, como a irrecorribilidade das interlocutórias (exemplo dos processos trabalhistas e dos juizados) ou depósito recursal (para privilegiar o credor), mas preferiu repetir o modelo do Código de 1973, já com 40 anos de idade, e introduzir novos gargalos.
Um exemplo claro de retrocesso é a introdução de um “embargos infringentes de ofício” disfarçado no artigo 955, pelo qual, havendo um voto divergente, o órgão terá de chamar outros desembargadores para garantir possibilidade de mudança do julgamento. Ou seja, não basta o julgamento pelo juiz de primeiro grau e nem a confirmação por dois dos três desembargadores; agora, o processo terá de ser pausado para que se chamem outros dois desembargadores para que analisem tudo de novo. Ao invés de simplificar um recurso, complicaram e ainda o tornaram mais devagar. Mais um retrocesso recursal é a previsão geral de efeito suspensivo às apelações.
Outras mudanças curiosas, que isoladas até não chamariam tanto a atenção, mas que em conjunto provocarão atraso fantástico nas mãos de quem queira prolongar o processo são [1] a determinação de que as sentenças terão não só de resolver o processo (como o fazem hoje em dia), mas também a responder longos questionários, ainda que protelatórios e irrelevantes ao julgamento do processo (artigo 499), e [2] a necessidade de dar vista aos advogados de fundamentos que estes não tenham trazido ao processo (artigo 10 e 504). Em resumo, ao contrário do que acontece atualmente — em que o juiz julga o caso conforme a Constituição e a Lei —, no futuro, ao ter em mãos o processo para sentenciar, o juiz terá não só de aplicar a lei aos fatos, como também terá de verificar se as normas e os julgados dos tribunais foram citados pelas partes, pois, se não o foram, é obrigado a reabrir o processo para que estes possam examiná-los e se pronunciar previamente, gerando, na prática, uma espécie de recurso antecipado contra a decisão antes mesmo de ela ser proferida (atrasando o processo) e, ainda, a chance de mais novos argumentos e teses que terão de ser examinadas (ainda que irrelevantes ao caso) e, que, por sua vez, poderão determinar nova vista, com novas manifestações, etc.
Ou seja, a oportunidade para um verdadeiro ciclo infinito para advogados que, percebendo que perderão a causa, tenham capacidade de gerar incidentes para evitar o fim útil. Num exemplo grosseiro — mas possível diante do projeto — num acidente de trânsito comum, mesmo com todas as provas dizendo que o réu foi o culpado, se este alegar que um marciano provocou o acidente, o juiz terá de examinar este “argumento”. E se o juiz embasar sua decisão num julgado do STF que não foi citado no processo, terá de abrir vista às partes para debaterem esta decisão, dando nova oportunidade para novas teses, e assim por diante. Como não há sanção adequada à litigância de má-fé, o processo andará em círculos, tal qual um cachorro tentando morder o próprio rabo.
Aliás, nada de relevante alterado na sistemática da imposição de multas ao litigante de má-fé, que, como regra geral, depois do processo terminar, serão executadas como dívida ativa (artigo 77, parágrafo 3º). Ou seja, condenado durante o processo, a parte terá ainda mais interesse em evitar o fim deste, pois só pagará a sanção ao final. Isso se pagar, pois, como é da praxe forense, as execuções fiscais de valores inferiores a limites fixados pelo Executivo acabam sendo arquivadas. Se quisesse mesmo reduzir as chicanas processuais, o projeto teria autorizado multas maiores — e progressivas — bem como a sua cobrança antecipada.
Curiosamente, também contra a efetividade do processo, ou seja, prejudicando aquele que teve seus direitos violados e busca reparação na Justiça, mas dando mais chances aos devedores, o projeto de CPC inova ao criar um incidente de desconsideração da personalidade jurídica (artigo 133) (dando tempo ao fraudador esconder seus bens até que este incidente se resolva), inclusive para os juizados especiais (artigo 1.074) e também proíbe que sejam dadas liminares para bloquear o dinheiro ou aplicação financeira do devedor (artigo 298, parágrafo único).
Houve várias outras mudanças aparentemente pequenas, mas que gerarão no mínimo incoerência lógica, e, na prática, atrasos ao processo, tais como a inovação que começou interessante, mas terminou esdrúxula: a redistribuição do ônus da prova, isto é, a possibilidade de o juiz mudar o dever de provar de uma das partes para a outra (artigo 380); e complicado ficou porque se o juiz mudou o ônus da prova por existir dificuldade para a parte, o código previu, de forma curiosa, que não poderá fazê-lo se este ônus ficar excessivamente difícil para a outra parte; ou seja, se autor e réu disserem que não têm como fazer a prova, teremos outro ciclo contínuo de debates.
Diga-se de passagem que há flagrante inconstitucionalidade de produção da prova antecipada contra a União na Justiça Estadual (artigo 388, parágrafo 4º), outra medida que gerará prejuízo prático a diversas pessoas até que venha uma decisão final do STF.
Uma alteração na Câmara que produzirá flagrante injustiça é a inversão da capacidade de o juiz verificar os pedidos de gratuidade de justiça. Se antes o juiz poderia determinar que a parte que pede gratuidade de justiça deva comprovar a sua renda e suas despesas; agora, se a parte contrária não pedir, o juiz está impedido de fazê-lo (artigo 99, parágrafo 1º); logo, como infelizmente ocorre várias vezes na prática, se uma empresa notoriamente conhecida como lucrativa ou profissional de alta renda solicitar que lhe sejam pagas todas as despesas e a outra parte não perceber, o Estado (e o contribuinte) terão de suportar este ônus financeiro.
O regramento dos conciliadores e mediadores é outra medida que produzirá grandes prejuízos e da qual já se antevê a multiplicação de mecanismos de fraudes. Isso porque o projeto cria a proeza de instituir um cadastro aberto para qualquer um se inscrever — bastando ter feito curso a ser pago pelo próprio Estado (artigo 168, parágrafo 1º) — que serão indicados de forma aleatória para atuar nos processos (artigo 168, parágrafo 2º), em regra em local diverso e longe da fiscalização do juízo (artigo 166, parágrafo 2º) e de forma confidencial (artigo 167, parágrafo 1º). Melhor receita para abrir as portas às fraudes contra a população menos conhecedora de direitos não há! Por desconhecer a prática do que ocorre no Brasil, o projeto aparentemente não permite a conciliação ou mediação por juízes (artigo 166, parágrafo 2º), ignorando vários exemplos de sucesso nesta área, tais como milhares de conciliações em SFH oriundas de experiências de sucesso originadas em 2003 pela Justiça Federal da 4ª Região, o início dos juizados de pequenas causas em 1982, por obra de juízes estaduais de Rio Grande (RS), a conciliação nas ações de desapropriação para duplicação da BR-101 e tantas outras. Não se nega que possam atuar conciliadores e mediadores, mas vedar a participação dos juízes e querer que aqueles atuem de forma sigilosa, sem fiscalização, é, infelizmente, abrir as portas para a fraude. Basta uma singela pesquisa na internet pelos termos “fraude juiz arbitral” ou “picarbitragem” e são apontados desdobramentos que vão desde apreensão de centenas de carteiras de “juiz arbitral” (inclusive possibilitando porte de arma de fogo), vendas de cursos ou expedição de citações e intimações com ameaça de condução coercitiva. Não é à toa que o CNJ, no passado, foi acionado pela OAB justamente para investigar entidades deste quilate; entendendo ser ilegal o uso de carteiras funcionais, utilização de armas da república e denominação de juiz ou tribunal, o CNJ encaminhou para o Ministério Publico cópias daquelas acusações (CNJ, PP 0006866-39.2009.2.00.0000).
Uma das grandes “novidades” que surgiriam como novo Código já são previsões que existem: a suspensão de processos que tratam de matéria conhecida no STF como repercussão geral e no STJ como recurso repetitivo. Além de nãos serem mais uma novidade — e por isso não justificarem todo um novo código — estes institutos, na prática, representam um problema prático que ainda não está equacionado. O primeiro deles, que já acontece diariamente, é a suspensão de milhares de processos deixando as partes a aguardar uma solução que poderá levar anos pelo STF. Como o número de questões em repercussão geral admitidos pelo STF (524, ou seja, 69,4% dos pedidos) é bem maior do que o número julgado (185, apenas 35,37%), a perspectiva é a de que as pessoas levem anos aguardando uma solução. O exemplo mais claro disso é a pendência do exame da eficácia, ou não, dos equipamentos de proteção para evitar o reconhecimento de tempo de atividade para aposentadoria especial: há milhares de processos aguardando e pessoas esperando para saber se vão, ou não, se aposentar. O segundo problema é que, se e quando julgadas cada uma destas questões, haverá a necessidade de avaliar em cada processo qual a repercussão do julgado do STF/STJ, bem como verificar as consequências individualizadas — imagine, caro leitor, no exemplo de processos previdenciários parados por vários anos, milhares de situações sendo analisados uma a uma para verificar se em cada um deles calcular o tempo que resultou do julgado e verificar se houve outro(s) pedido(s) de aposentadoria concedido(s) neste intervalo de tempo para fazer a compensação de valores devidos? Aquilo que poderia ser feito pouco a pouco terá de ser feito em lote, ocupando todos os juízes e servidores por tempo incalculável. E apesar dos problemas já perceptíveis em pouco tempo, esta sistemática adotada no STF e no STJ será reproduzida aos tribunais!
É bem verdade que tais circunstâncias não decorrem do projeto em si, mas elas são um claro sinal dos problemas que surgem com reformas feitas com pensamento teórico e pouco pragmático. Neste passo, não se pode deixar de lamentar que, ao contrário de outros países realmente federativos, em que o Direito pode e deve se atentar às circunstâncias de cada lugar, o Brasil se constitui num estado cada vez mais centralizado. Isso gera um paradoxo: a mesma Constituição que exalta o princípio federativo (artigo 18 e artigo 60, parágrafo 4º, inciso I) e reconhece as desigualdades regionais que precisam ser reduzidas (artigo 3º, inciso III), prevê um Tribunal Superior para manter uma uniformização da interpretação do direito federal — STJ — e um mecanismo para cassar decisões que tenham aplicado a lei de forma diferente — Recurso Especial (artigo 105, inciso III, alínea ‘c’). Contudo, como imaginar uma aplicação totalmente igual para a regra de que o tempo de serviço exige prova material (artigo 55, parágrafo 3º, Lei 8213/1991) na região metropolitana de São Paulo e para as populações ribeirinhas do Amazonas, que sequer têm certidões de nascimento? Como pressupor que uma linha de pobreza imaginária de renda per capita seja a mesma para Brasília e para o interior mineiro de Itinga, no coração do Vale do Jequitinhonha, com uma das menores rendas do país? Os crimes de proteção dos costumes, o reconhecimento de “contratos verbais” e outros fatos sociais devem ter a mesma interpretação em cidades de 10 mil habitantes, no interior do país, que é dada nas capitais? A aplicação da lei deve desconhecer que vivemos num país com tantas desigualdades econômicas, sociais, educacionais e de oportunidades?
Para que não se diga que todas as “inovações” são ruins, há itens que poderão auxiliar, como a previsão de gravação audiovisual das audiências (artigo 374, parágrafo 5º) — a exemplo do que ocorre atualmente nos processos penais — e uma regulamentação da fixação de honorários advocatícios (artigo 85), que, porém, poderiam ter sido inseridos no atual CPC sem criar todo um novo diploma legal para isso.
Por fim, sobrevoando as reflexões apresentadas, é possível traçar algumas conclusões. A primeira é a de o projeto de novo Código de Processo Civil não trará mudanças estruturais simplificadoras do “modo de ser” do processo, optando por mudanças no geral cosméticas, de aparência. A segunda é a de que trará mudanças que, em vez de acelerar os processos, irão criar mais incidentes e demoras na resolução, em prejuízo ao cidadão que teve seu direito violado. O projeto será lançado com festa — mas nada alterará — e produzirá diversos livros novos e palestras ou cursos a serem feitos. Em conclusão, “muito barulho por nada”, parodiando famosa peça de Shakespeare; se aprovado, o novo CPC confirmará a máxima de que nada é tão ruim que não possa piorar.