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sábado, 6 de outubro de 2012

O Valor da Constituição


O 24º aniversário da Constituição de 88 nos remete a um momento de reflexão. Os avanços ocorridos neste período, embora ainda não cumpram os objetivos traçados pelo Constituinte no art. 3º, representam uma conquista inegável para a democracia brasileira.

As mudanças não ficaram apenas numa folha de papel, mas produziram tanto a consolidação das instituições republicanas, que sobreviveram à transição e até mesmo ao “impeachment” de um presidente, quanto uma nova pré-compreensão da Sociedade sobre o valor e a importância das normas constitucionais. Isso gerou inegáveis frutos para os Direitos Fundamentais, que passaram a ser reclamados pela população.

Foi a partir da nova Carta, por exemplo, que o Judiciário passou a reconhecer o dano moral, mesmo antes da edição do Código Civil de 2002, dando a força autônoma aos direitos previstos no art. 5º da Constituição. Olhar o passado, no qual sequer se previam direitos do consumidor, revela a profunda transformação que este novo paradigma de pensamento provocou.

A consolidação da proteção ambiental, do direito à saúde, da união estável e tantas outras esferas de proteção até então negadas pela ordem legal demonstram a importância do sistema inaugurado em 1988, resguardado pela Justiça antes mesmo que a lei viesse a regulamentar os direitos então previstos.

Há ainda profundas desigualdades e problemas que afligem a Sociedade e os erros e acertos neste percurso são naturais em qualquer empreitada humana, mas as transformações já obtidas provam que o caminho traçado pela Constituição gerou passos firmes e na direção correta para esta longa caminhada.

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Originalmente publicado no site da Ajufe, em lembrança aos 24 anos da Constituição.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Apreciação crítica: Processo Penal Norte-Americano

O artigo abaixo copiado foi uma apreciação crítica que elaborei como trabalho de conclusão do curso de Direito Penal e Processual Penal oferecido pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da Quarta Região.

Em outras palavras, é um resumo de uma das aulas (cujo tema considero interessante) acrescido de considerações sobre o teor da palestra.

Como estou sem tempo de adaptá-lo para transformá-lo em um artigo formal a ser publicado, disponibilizo aqui aos leitores do blog que tiverem interesse.

Para quem quiser ver algumas sugestões minhas para a melhoria do sistema processual, indico este texto sobre como torná-lo mais eficaz (clicando aqui) e esta sugestão de dez medidas para melhorar o sistema de justiça criminal (clique aqui)  ou este experimento filosófico de como seria um "mínimo essencial do processo" (clique aqui).


Para os que quiserem outros temas, há excelentes artigos no site da Escola do Tribunal, basta clicar aqui.

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PARA QUEM GOSTA DE IR RÁPIDO À CONCLUSÃO, eis o resumo das considerações finais:

A evolução histórica de uma Sociedade produz as instituições que nela existem atualmente e este processo não é estanque, mas sim dinâmico, alterando conforme são percebidos os erros ou acertos das experiências realizadas.

No processo penal, há fundamental importância para a visão que a Sociedade tem do papel do juiz, seus poderes, seleção e atuação inquisitiva ou acusatória, pois é partir desta conformação político-social que serão parametrizados aqueles critérios.

O Juiz Norte-Americano é fruto de uma visão de Administração da Justiça diferente da brasileira, e lá, como cá, critica-se o papel acusatório do Juiz (gerando uma inércia na ação e falta de controle sobre outros órgãos, como no “plea bargain”) e da sua seleção. Hoje, defende-se nos EUA a necessidade de critérios meritocráticos para seleção dos juízes, pois eleições implicam dois problemas sérios como o [a] financiamento de campanha e [b] fragilidade na liberdade de focar na lei e não na popularidade da decisão.

O Brasil, com história diferente baseada na centralização do poder político, ainda carrega outras diferenças como o pluralismo de regimes jurídicos (privilégio a determinadas classes) e diferença entre o direito escrito e o de fato praticado. Diversas reformas penais e processuais foram propostas e hoje tramitam no Legislativo, mas não se pode deixar registrar a ressalva de que, embora as comparações entre os sistemas possam trazer aprimoramentos para cada um deles, não é correta a migração pura e simples de institutos ou normas estrangeiras – tais como o “plea bargain” e o sistema puramente acusatório - sem a devida adaptação à realidade e à Constituição brasileira, sob o risco de invalidade jurídica e ineficácia pela ausência da base social que poderia ampará-la.
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Resumo
O estudo realiza uma apreciação crítica sobre o tema “Processo Penal Norte-Americano”. A partir de uma síntese da palestra oferecida e da percepção histórica de Alexis de Tocqueville, são apresentadas algumas das contribuições que, comparando com o Brasil, pode fornecer para apresentar um aperfeiçoamento do modelo atual de compreensão e aplicação do Direit Penal Brasileiro.

Palavras-chave

DIREITO COMPARADO – PROCESSO PENAL – DIREITO NORTE-AMERICANO.


1 Nota introdutória.


O presente trabalho trata-se de uma apreciação crítica sobre o tema “Processo Penal Norte-Americano”, realizado como requisito de conclusão final do Curso de Currículo Permanente, Módulo IV, Direito Penal e Processual Penal 2011 (Edição Presencial), da Escola de Magistratura da Quarta Região Federal. Busca-se, com o texto, [1] apresentar uma síntese do conteúdo ministrado durante referida palestra e [2] da obra “Democracia na América”, de Alexis de Tocqueville, resumindo suas principais idéias relativas às noções de Estado, Governo, Sociedade, Direito e Democracia para articular estes conhecimentos em [3] uma visão crítica do estágio atual do processo penal brasileiro.


2 Desenvolvimento
2.1 Síntese do conteúdo ministrado.

Para o palestrante, apesar de a independência dos EUA ter sido uma Revolução, ela não foi uma total ruptura, tanto que, até hoje, EUA e Inglaterra são aliados comuns e há uma identidade cultural e artística muito forte entre eles. Por isso, a compreensão do processo norte-americano depende da compreensão do processo no Direito Inglês.
Assim, ele contextualiza o processo histórico de formação do Processo Penal Norte-americano a partir das suas raízes inglesas.
No ano de 1066, o rei Normando William (Guilherme o Conquistador) venceu a batalha de Hastings contra o último rei saxão, tomando totalmente a ilha da Inglaterra. A Normandia, região ao norte da França, era uma organização política mais organizada e sofisticada do que as tribos saxãs, que foi levada para a Inglaterra.
Apesar de ser duro e sanguinário, William, logo que tomou o poder na Inglaterra, percebeu que a ocupação militar é apenas a primeira etapa e que a conquista só se faz no plano político. Ele percebeu que a consciência e coração do povo inglês estavam com o penúltimo rei saxão, o rei Eduardo o Confessor, que era profundamente religioso (foi o construtor da Abadia de Westminster) e caridoso, com uma relação muito íntima com o povo. Na sua coroação, William, intuitivamente, disse ao povo algo que virou tradição para todos os reis futuros: “juro cumprir as leis de Eduardo Confessor”. Assim, elas não eram mais as leis do Rei, mas eram as leis da terra. Criou-se a tradição da incorporação da lei do rei à lei da terra, gerando a expectativa de que os novos reis iriam respeitar as leis já tradicionais.
Henrique I, tataraneto de Guilherme (William), criou um sistema judicial na Inglaterra sob dois pilares:
[1] tribunais centrais em Londres, formados por juristas letrados;
[2] juízes itinerantes (os “sheriffs” ou “justicers”), que tinha não só a função jurisdicional, mas também outras funções administrativas, como a de coletor de impostos.
Estes juízes itinerantes, que levavam a justiça às comunidades, tiveram uma visão de administrador da justiça para prestigiar as cidades locais, até para fortalecer as pequenas cidades em detrimento aos nobres que tinham exércitos. O seu papel não era ser o produtor do Direito, mas sim o de propiciar ao povo a capacidade de ele mesmo produzir a Justiça. Quem produz o Direito é a consciência do povo, pois ele conhece a lei, que não é a lei do rei, mas a lei da terra, é o direito comum, o “Commom Law”. O papel do Juiz é, então, o de fazer com que o julgamento seja organizado de forma justa, de uma igualdade no processo. Se vai organizar um duelo, o juiz tem que garantir que tenham armas iguais, armaduras iguais e assim por diante. Por isso que os cavaleiros eram contratados por mulheres para lutarem por ela num duelo.
O processo acusatório inglês nasce neste contexto. A ação cabe à vítima que vai ao Juiz apresentar as suas causas contra os réus, sem promotor público. O júri não é feito de juízes, mas sim de testemunhas, que conhecem os fatos. São comunidades pequenas. Estes jurados são co-juradores, isto é, juram ou com o réu ou com a vítima.
O modelo nasce desta forma, mas vai se aperfeiçoando. Por exemplo, nos crimes contra a coroa, o rei não abre mão de ser representado por alguém: o procurador da Coroa. A vítima muitas vezes não tinha interesse e os casos eram graves e lentamente isso ia passando para a polícia. No século XVII, por exemplo, a polícia colhia as provas e ia ao mercado procurar um advogado para contratá-lo para ajuizar a ação contra o réu.
Em algum momento, um determinado policial que por acaso tinha formação jurídica deve ter decidido ele mesmo ajuizar uma ação criminal e acabou-se formando um corpo de acusadores dentro da pró´pria polícia. Só em 2001 este corpo de acusadores se destacou da Polícia e formou o CPS (“Crown Prosecutor Service”), uma espécie de Ministério Público, um órgão separado da Polícia.
Esta história do Direito Inglês é a história da experiência, de algo que nasce de uma forma e com o tempo vai corrigindo seus defeitos.
Nos Estados Unidos da América, com a vinda dos que queriam mais simplicidade nos ritos religiosos e mais simples, vieram no Mayflower, e, logo que chegaram, assinaram um pacto de respeitar as regras de convivência, a respeitar a propriedade, a ter tolerância religiosa, só decidir as questões por maioria e a eleger seus representantes.
As 13 colônias norte-americanas reproduziram um pouco o modelo do juiz britânico de que apenas propicia as formas para que o povo faça a Justiça.
No começo da evolução dos Estados Unidos foi iniciada a criação das Universidades e delas nasceu a intelectualidade, formada nos estados unidos e pensando as questões americanas a partir da perspectiva norte-americana, em vez de importarem o conhecimento britânico. Isso deu uma consistência ao movimento de independência.
As garantias inglesas valiam para a Inglaterra e seu povo, mas não para os norte-americandos; o rei era tolerante para com os seus, mas tirânico com as colônias.
Declarada a independência, foi promulgada, depois, a Constituição.
É a primeira experiência real de um Estado sustentado sobre três poderes, pois nesta Constituição, com nove artigos, dedica-se o terceiro artigo ao poder judiciário.
O perfil do judiciário nascido na Constituição Norte-americana com uma Suprema Corte e tribunais abaixo dela, cuja criação é de competência do Legislativo. Estabelece o princípio de que os juízes manterão o seu cargo enquanto tiverem “bom comportamento” e que terão uma remuneração fixa, paga em datas fixas, que não poderá ser diminuída. A Suprema Corte foi criada como um tribunal recursal com uma pequena competência originária envolvendo casos em que as partes são embaixadores, cônsules, ou os Estados. E é justamente a questão da competência da Suprema Corte que irá definir o primeiro grande caso do constitucionalismo, no caso Marbury vs. Madison, no qual a Suprema Corte reafirmou seu papel recursal ao declarar inconstitucional o dispositivo da lei judiciária que lhe dava competência originária contra ato que recusava nomeação (no caso, de um “midnigth judge”, juiz nomeado para a Suprema Corte nos últimos minutos do mandato do Presidente).
Além disso, a Constituição definiu que todos os julgamentos criminais serão feitos por um júri. Durante alguns anos isso foi levado de forma tranqüila, mas a posteriormente, isso se mostrou inviável para a administração da justiça, e a Suprema Corte decidiu o “Caso Patton”, dizendo que há dois tipos de normas constitucionais no processo penal; num tipo, a norma cria um “standard” de justiça que o Processo Penal não pode prescindir (julgamento imparcial, ampla defesa, etc); no outro tipo, as normas que dão garantias ao réu (como o julgamento pelo júri), que podem ser objeto de desistência deste, ou seja, ele pode abrir mão desta garantia. Com esta distinção, a Suprema Corte salvou o sistema judiciário do colapso.
Alguns Estados americanos ainda mantêm o modelo do juiz e do procurador eleitos; em alguns deles, a eleição é partidária, em outros, ela é apartidária, e, em outros, o sistema é misto.
Os juízes federais são nomeados para a vida toda, enquanto mantiverem o seu bom comportamento. Não existe, para eles, a aposentadoria compulsória, só deixando o cargo quando entenderem que devem deixá-lo, mas eles podem se aposentar voluntariamente, recebendo proventos integrais, após os 65 anos (variando conforme o tempo e atividade anterior). Poderá voltar a trabalhar mesmo aposentado, mas de forma graciosa perante os Tribunais.
O juiz tem que manter conduta ilibada. É encorajado que o juiz ministre aulas e dê palestras, mas a renda com estas não pode ultrapassar quinze por cento dos seus rendimentos.
Os juízes federais norte-americanos são nomeados pelo Presidente da República, mas são indicados pelo Senado, havendo uma “filtragem política”.
O Judiciário norte-americano tem que ser compreendido dentro do sistema de “freios e contrapesos”, o sistema de controle recíproco entre os poderes, no qual cada um controla os demais e é controlado por estes.
Há vários instrumentos de controle, como:
[a] o Orçamento enviado pelo Executivo e aprovado pelo Legislativo;
[b] a nomeação de todos os funcionários é feita pelo Executivo;
[c] a aplicação da lei (“enforcement”) depende da atuação do Executivo, pois a lei pode ser aprovada pelo Legislativo e o Executivo entender que não é conveniente aplicá-lo naquele momento, deixando-a para uma “reserva estratégica”;
[d] “impeachment”, que pode ser aplicado a todos os servidores civis, inclusive os juízes, como controle do Legislativo;
[e] a aprovação pelo Legislativo na sabatina dos juízes federais, com uma comissão permanente no Senado com responsabilidade de aprovação ou rejeição dos juízes federais apontados; determinando, por exemplo, a investigação pelo FBI de todos os indicados para cargos de juízes;
[f] controle do Executivo sobre a atividade Jurisdicional, como o
[f.1] “Plea-bargaining”, 95 % dos casos são resolvidos por acordo, mas o juiz não tem acesso ao que está por trás dos acordos (as partes têm que revelar as provas que possuem às outras partes, mas não ao juiz), cabendo-lhe apenas indagar ao réu sobre a voluntariedade do acordo e se ele sabe as conseqüências da condenação; critica-se o sistema, porque há muitos “blefes” ou “ameaças” por parte dos Promotores, com provas que, às vezes, não tem, e, ainda, jogam com a opinião pública e com o desgaste de um processo criminal no qual os custos e o tempo já são uma sanção, pois, ainda que absolvido, o réu sairá moral e psiquicamente arrasado; isso ficou evidenciado pela descoberta de vários casos de inocentes que foram condenados (alguns no corredor da morte) cuja inocência só foi demonstrada com os avanços nos exames de DNA, posteriores aos casos em que houve os acordos;
[f.2] “Sentencing Guidelines”, em 1973 foi publicado um estudo, “Law without order”, feito por um juiz federal, mostrando a discrepância entre as sentenças dadas pelos juízes, que para fatos criminosos idênticos eram aplicadas penas muito diferentes, às vezes pelo mesmo juiz, demonstrando uma falta de critério; foi criada, então, uma comissão, no Executivo, formada por juristas, que elaboraram “guias de sentença” com um gráfico no qual uma linha corresponde ao histórico do réu e no outra a gravidade do fato sendo a pena definida pelo cruzamento destas linhas; a cada ano esta Comissão lança novas “Sentencing Guidelines”, inclusive indicando as Políticas Criminais, como o tipo de penas (prestação de serviços) e outros.
Os dois últimos fenômenos (“plea bargain” e “sentencing guidelines”) produzem uma crítica com a sugestão e a tendência de um certo retorno ao sistema inquisitivo, pois o sistema acusatório se mostra muito dependente da habilidade dos advogados e da opinião pública, em detrimento da verdade e da justiça.
Com relação às competências da Justiça Federal e Justiça Estadual norte-americanas, o palestrante informa que mais de 90 % das causas são da Justiça Estadual, mas está havendo um aumento nos casos federais, especialmente por conta do narcotráfico. No caso “Rodney King”, houve uma absolvição no júri estadual, ocorrendo uma comoção social e quebra-quebra nas cidades; posteriormente, apesar da cláusula constitucional vedando o “Double Jeopardy” (que pode ser comparada com a coisa julgada no criminal, isto é, a pessoa só pode ser processada uma única vez pelo mesmo fato), foi resgatada a “tese da dupla soberania”, na qual, como os Estados fizeram a Constituição e cederam parte de sua soberania, havia, ainda, a possibilidade de ação federal, pois a “dupla condenação” só vale na jurisdição original, e o processo foi reaberto na Justiça Federal.



2.2 A visão de um Francês sobre o sistema Norte-Americano.


Alexis de Tocqueville foi um aristocrata, intelectual político e historiador francês que, depois de visitar e estudar os Estados Unidos da América, escreveu, em 1835, uma das obras seminais para a compreensão daquele país, ao comparar o seu processo de formação político com o das nações européias, que ainda eram Monarquias.
O principal ponto observado por Tocqueville na América é a igualdade de condições, que se reflete numa fragmentação do poder político por ser também atribuído ao povo, e não apenas aos nobres ou ao clero, como na Europa[1]. Para ele, ao sentirem as leis como obras suas, a comunidade aceita a associação entre eles com amor e sem custo, substituindo o poder dos nobres e do rei[2].
Segundo ele, um aspectos importantes foi a contribuição dos puritanos que, vindos da classe média inglesa a partir de 1620 para o continente americano, tiveram o cuidado de, ao chegar, formaram comunidades organizadas e com fortes laços, não só políticos como também religiosos[3]. Além disso, “As colônias inglesas, e foi essa uma das causas principais de sua prosperidade, sempre gozaram de mais liberdade interior e de mais independência política do que as colônias dos outros povos, mas em parte alguma esse princípio de liberdade foi mais completamente aplicado do que nos Estados da Nova Inglaterra[4].
Disso resultou um corpo de leis políticas que reconheciam princípios que, segundo Tocqueville, os europeus do século XVII ainda não compreendiam e não aplicavam: a intervenção do povo nas coisas públicas, o voto livre do imposto, a responsabilidade dos agentes do poder, a liberdade individual e o julgamento por júri[5].
Ele diz, textualmente, que
“Na maior parte das nações européias, a existência política começou nas regiões superiores da sociedade e comunicou-se, pouco a pouco, e sempre de maneira incompleta, às diversas partes do corpo social. Já na América, podemos dizer que a comuna foi organizada antes do condado, o condado antes do Estado, o Estado antes da União. [...] No seio da comuna, vemos reinar uma vida política real, ativa, toda democrática e republicana. [...] A comuna nomeia seus magistrados de todo tipo; ela se tributa, ela reparte e arrecada o imposto sobre si mesma”[6].

Ao descrever a estrutura federativa da América, Tocquevile aponta que ela é formada por “vinte e quatro pequenas nações soberanas, cujo conjunto forma o grande corpo da União”. Essa federação é formada, no primeiro degrau, por uma “comuna”, mas acima o condado, enfim o Estado[7].
Embora a sua organização não seja idêntica em toda a União, no geral as comunas são formadas por dois a três mil habitantes que deliberam sem uso de representantes legais; porém, elegem alguns indivíduos – os “select-men” - para exercerem funções administrativas, mas as decisões fundamentais são tomadas por todos, mediante assembléias gerais convocadas por eles[8]. Embora não tenha existência política, o condado é formado por partes que não têm entre si laços necessários, mas que, sozinhos, não teriam condição de manter uma estrutura para administração da justiça[9].
Para TOCQUEVILLE, embora necessária para certos empreendimentos, a centralização não produz uma grandeza permanente, mas apenas passageira, pois, apesar de reunir forças para triunfar em um combate, ela debilita os povos, diminui o sentido de cidadania e não consegue abraçar todos os detalhes da vida social. Por isso, certos empreendimentos devem ser deixados para o Estado nacional e outros para o povo[10].
Ao dar seu testemunho sobre o que viu na América, Tocqueville diz:
“O que mais admiro na América não são os efeitos administrativos da centralização, mas os efeitos políticos. Nos Estados Unidos, a pátria se faz sentir em toda a parte. É um objeto de solicitude desde a cidadezinha até a União inteira. O habitante se apega a cada um dos interesses de seu país como se fossem seus. [...] Não raro, o europeu vê no funcionário público apenas a força; o americano vê nele o direito. Podemos, pois, dizer que na América o homem nunca obedece ao homem, mas à justiça ou à lei”[11].

Isso se reflete no papel do Poder Judiciário na América, pois ele se faz sentir em todo acontecimento político. Há três características apontadas por Tocqueville: [1] o juiz atua somente como árbitro, sendo necessária uma ação, uma contestação e um processo; [2] ele só atua em casos particulares e não se pronuncia sobre princípios gerais; [3] somente agindo quando chamado[12]. Segundo ele, “O juiz americano não pode se pronunciar, a não ser quando há litígio. Ele trata exclusivamente de um caso particular e, para agir, deve sempre esperar que o tenham solicitado[13].
Ao tratar do centralismo da Constituição como elemento fundamental da política norte-americana e comparar este sistema com o das nações européias daquela época, Tocqueville afirma que uma constituição americana não é considerada imutável, como na França, e nem pode ser modificada pelos poderes ordinários, como na Inglaterra. Ela é uma obra à parte que, representando a vontade de todo o povo, vincula tanto os legisladores quanto os simples cidadãos, mas que pode ser mudada pela vontade do povo, segundo formas estabelecidas e nos caso previstos; ela pode variar, mas enquanto existe é a origem de todos os poderes[14].
Ao tratar da relação entre este poder dos juízes e o poder da Lei, Tocqueville aponta que
“Os americanos confiaram, pois, a seus tribunais um imenso poder político, mas, obrigando-os a só criticar as leis por meios judiciários, diminuíram muito os perigos desse poder. [...] Encerrado em seus limites, o poder concedido aos tribunais americanos de pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade das leis representa também uma das mais poderosas barreiras erguidas contra a tirania das assembléias políticas”[15].

Num sentido geral, portanto, pode-se dizer que Tocqueville descreve não só a situação que se lhe apresentava como atual, mas também a formação da comunidade política dos EUA. Aponta os fatores que levaram a uma sociedade democrática, fundada na idéia de igualdade de condições, que levou a um Estado republicano e federativo, este formado a partir de uma estrutura de união de pequenos grupos (as comunas) até a União, passando pelos condados e pelos Estados. Sustenta que a participação política ativa dos membros da comunidade dá um sentido de legitimidade às decisões coletivas. Essa participação se dá pelo voto e pela responsabilização dos agentes políticos. Destaca, porém, a importância do sistema de controle entre os poderes ao referir a importância da necessidade dos limites.


3 Articulação crítica entre os conteúdos.



A partir do texto apresentado, é possível traçar algumas premissas que, embora não conclusivas no sentido de uma verdade inalcançável, permitem supor realizar algumas afirmações reflexivas sobre o momento atual do Judiciário brasileiro e as transformações legislativas ocorrentes no Processo Penal Brasileiro.
É possível afirmar que evolução histórica de uma Sociedade produz as instituições que nela existem atualmente e que este processo não é estanque, mas sim dinâmico, alterando conforme são percebidos os erros ou acertos das experiências realizadas.
No caso do processo penal, há fundamental importância para a visão que a Sociedade tem do papel do juiz, seus poderes, seleção e atuação inquisitiva ou acusatória, pois é partir desta conformação político-social que serão parametrizados aqueles critérios.
Como se vê dos temas articulados entre si (palestra proferida e livro doutrinário), o papel e forma de atuação do Juiz Norte-Americano decorrem de uma visão diferenciada da Administração da Justiça, que, por sua vez, nasceu tanto de restrições históricas nas origens do sistema inglês quanto do processo de formação do Estado Norte-Americano, partindo do indivíduo para o Estado central por intermédio dos Condados e Estados.
Por outro lado, não pode deixar de apontar que mesmo no sistema Norte-Americano há críticas tanto ao papel fortemente acusatório do Juiz (gerando uma inércia na ação e uma exacerbação da falta de controle sobre outros órgãos, como no caso das críticas ao “plea bargain”), quanto ao processo de seleção deste.
De fato, em outro curso realizado, foi possível constatar a existência de entidades não governamentais norte-americanas que estudam estes temas e já produziram críticas à situação atual daquele Judiciário. O “Institute for the Advancement of the American Legal System” (IAALS) é uma entidade destas e atua em três áreas para reformar o sistema judicial norte-americano: [1] seleção de juízes; [2] avaliação (“accountability”) e [3] reforma das regras do processo civil. Com relação à seleção de juízes, o IAALS defende o sistema de “Informed Judicial Selection”, no qual a seleção dos juízes seguiriam critérios meritocráticos fundados em relatórios e avaliações permanentes do trabalho realizado pelos juízes, em vez do sistema de eleição (especialmente o partidário), pois as eleições implicam dois problemas sérios observados nos EUA: [a] o juiz tem que pedir dinheiro, e para quem pedirá ?; [b] o juiz tem que ter liberdade para focar na lei e não pensar se a decisão legal é popular ou não.
No Brasil, como se sabe, o sistema político teve uma história diferente, com centralização do poder político desde a época do Brasil Colônia, legando diversos fatores culturais diferentes, tais como [a] dualismo legal entre o direito romano idealizado pelos acadêmicos a partir do corpus júris de Justiniano e o direito romano modificado que foi incorporado pela prática e pelos costumes; [b] pluralismo de regimes jurídicos dados como privilegio a determinadas classes, conforme a cidadania (romanos vs. Ibéricos, depois visitados vs. Hispano-romanos, mouros vs. Visitados etc), privilégios legais especiais para cidades que eram libertadas (decretos chamados de forais), e associações que ficavam fora da jurisdição ordinária (nobres, militares, clero, professores, etc) e [c] o catolicismo dogmático e formal que impunha leis que não eram observadas pelos populares, como a proibição de religião aos judeus, a proteção aos índios e a vedação do divorcio que foi burlada pelo desquite e casamentos em embaixadas, etc[16].
Por outro lado, Sabe-se que a sociedade brasileira contemporânea parece exigir, cada vez mais, a velocidade e a celeridade dos processos, postulando um Judiciário que dê rápida solução aos litígios. Daí porque, no âmbito da chamada “Reforma do Judiciário”, foi providenciada a inserção do direito à razoável duração do processo no catálogo dos direitos fundamentais constitucionais[17]. Não é por outro motivo que, em duas ocasiões, os presidentes dos três poderes da República assinaram o chamado “Pacto por um Judiciário mais rápido e republicano”[18], assumindo compromissos políticos orientados para a promoção de medidas que facilitem a obtenção deste resultado. No âmbito destas reformas processuais, a preocupação também é crescente, já que se atribui a uma suposta lentidão dos processos criminais a causa de impunidade que provocaria aparente insegurança da população.
Antes da independência do Brasil, o Processo Penal foi regido, sucessivamente, pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, tendo esta última vigorado até a edição do Código de Processo Criminal, promulgado pela Lei 29, de Novembro de 1832. Posteriormente, com o golpe de 1937, mediante decretos-lei que não passaram pelo Legislativo, foram editados os Códigos Penal – CP – e de Processo Penal – CPP –, de 1940 e 1941, respectivamente, em vigor até hoje. Apesar disso, o CPP passou por diversas alterações pontuais, especialmente a partir da década de 1990. Em 2001, várias propostas foram agrupadas em sete projetos de lei, dos quais três foram aprovados em 2008 (Lei 11.689, 11.690 e 11.719), gerando uma “reforma tópica” que alterou profundamente o rito procedimental
Atualmente, Tramita na Câmara dos Deputados, sob o número 8.045/2010, o projeto de novo Código de Processo Penal (CPP), com a promessa de que sua aprovação irá colaborar na redução da impunidade no Brasil.
Dois aspectos deste projeto têm profunda relação com os temas abordados: [1] a prevalência do sistema acusatório (art. 4º), com restrição aos poderes do juiz com relação à iniciativa probatória, chegando à instituição do juiz de garantias (previsto a partir do art. 14, separando-se o juiz que atua na fase da investigação criminal daquele que comanda a ação penal, para proibir que presida a ação o juiz que tenha determinado ou decidido alguma medida liminar ou de prova durante o inquérito) e [2] o novo procedimento sumário, previsto a partir do art. 283, permitindo-se que o Ministério Público e o Réu façam um acordo até o início da instrução, no qual à confissão, parcial ou não, com relação aos fatos imputados e, consequentemente, aplicação imediata das penas mínimas possíveis, com dispensa da produção da prova e validade de sentença penal condenatória.
Por fim, não se pode deixar registrar a ressalva de que, embora as comparações entre os sistemas possam trazer aprimoramentos para cada um deles, a ligação entre o Direito e os valores Sócio-culturais de uma determinada Sociedade (revelada pela evolução histórica dos Sistemas Jurídicos), não se afigura conveniente a migração pura e simples de institutos jurídicos ou normas estrangeiras sem a devida adaptação à realidade e à Constituição brasileira. A importação descontextualizada de sistemas estrangeiros implicará não apenas uma invalidade jurídica, mas também a sua ineficácia, pois desfigurada a base social que poderia ampará-la. A simples transposição do “plea bargain” (que já sofre críticas nos EUA) e do “sistema acusatório” para a realidade brasileira pode gerar graves distorções, como as observados atualmente no Sistema Norte-Americano. Por isso, a importação destes modelos não pode ser feita sem a devida crítica, pois as sociedades estrangeiras são diferentes da brasileira, seja no que se refere à sua formação econômica e demografia, seja no que toca à sua Cultura e Valores.

4 Bibliografia utilizada.


KOURLIS, Rebecca Love. Institute for the Advancement of the American Legal System: presentation. Palestra proferida no JUDICIAL SEMINAR ON UNITED STATES LAW. Denver: Sturm College of Law, 15 fev. 2010. Anotações do curso.
RAMOS, João Gualberto Garcez. Processo Penal Norte-Americano. Palestra proferida no Curso de Currículo Permanente –Módulo IV – Direito Penal e Processual Penal (edição presencial). Florianópolis: Auditório da Justiça Federal, 21 out. 2011. Anotações do curso.
ROSENN, Keith S. O jeito na cultura jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América: leis e costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrático. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001




[1] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 7-11.
[2] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 13-14.
[3] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 43-44.
[4] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 44.
[5] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 47,
[6] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 48.
[7] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 69-70.
[8] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 71-74.
[9] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América,  p. 80-81.
[10] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 99-102.
[11] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 107
[12] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 111-113.
[13] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 113.
[14] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 114.
[15] TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América, p. 115/117.
[16] Para o tema, confira-se: ROSENN, Keith S. O jeito na cultura jurídica brasileira.
[17] Art. 5º, inc. LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
[18] Trata-se de dois Termos de compromisso político realizados pelos presidentes dos Poderes nos quais arrolaram diversas medidas administrativas e projetos de lei prioritários a serem implementados com os objetivos de acelerar os processos judiciais e melhorar o acesso à Justiça mediante simplificação dos procedimentos, valorização dos juizados especiais, ampliação da informatização do processo, dentre outros. O primeiro foi assinado em 15 de Dezembro de 2004, pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva; senador José Sarney, do Senado; deputado João Paulo Cunha, da Câmara; e ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal. O segundo foi assinado em 13 de Abril de 2009, pelos presidentes da República, Luiz Inácio Lula da Silva; do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes; da Câmara dos Deputados, Michel Temer; e do Senado, José Sarney.