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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Uma resposta à resposta à Katchanga !

O professor e autor Lenio Streck publicou um artigo na Internet muito interessante acerca da Teoria da Katchanga (clique aqui para acessar o artigo dele), que foi abordada num dos posts neste Blog (confira aqui o meu post).

Ele afirma que o artigo é uma resposta a artigos ("papers") entregues por alunos seus citando um artigo da Katchanga, que, possivelmente, deve ser o do colega George Marmelstein, cujo Blog é milhares de vezes mais visitado do que o meu (veja o post dele clicando aqui). Aliás, já existe uma outra resposta, feita pelo George Marmelstein, cuja leitura também é instigante.

De qualquer sorte,  tentarei analisar o artigo de Lenio, abstraindo, aqui, as citações, pois creio que o argumento vale pelo seu peso intrínseco, e não pela autoridade de quem o escreveu.

Também não abordarei a polêmica sobre quem foi o primeiro a falar da Teoria da Katchanga, pois acredito que, de fato, deva ter sido o Professor Warat (a quem não conheci pessoalmente, mas que é elogiado por todos que conheço que tiveram aulas com ele) e também porque nem eu e nem o George assumimos a autoria da, digamos, tese da Katchanga (risos).

O fato é que o Prof. Lenio argumenta, em resumo:

[a] a estória da Katchanga serve como metáfora para criticar a dogmática jurídica quando esta assume um caráter decisionismo voluntarista, isto é, quando defende a tese de que “a interpretação é um ato de vontade”;

[b] a crítica à dogmática é que ela “é um jogo de cartas marcadas”, pois ela mesmo pode reinventar as regras para decidir a questão da forma que melhor lhe convier, conforme “a vontade do poder” – fato este que seria algo “não-dito” e escondido dos participantes do jogo;

[c] neste contexto, haveria um papel perigoso da interpretação do direito e dos princípios;

[d] esta crítica ao decisionismo da dogmática jurídica transformou-se numa crítica ao ativismo judicial baseado na tese de que há várias interpretações constitucionais possíveis da literalidade da lei;

[e] existe um o papel criativo da hermenêutica quando da “leitura” de qualquer texto jurídico;

[f] a normatividade dos princípios também gera ambigüidades idênticas às que eram denunciadas pelas críticas à dogmática jurídica;

[g] a decisão que interpreta um texto jurídico depende não só deste texto, mas também de vários de fatores que ficam fora das análises estritas do fenômeno jurídico;

[h] a tarefa da democracia constitucional é “criar as condições para a extirpação de qualquer tipo de decisionismo”;

[i] esta limitação da atividade decisória deve ser feita a partir de uma Teoria da Decisão que se lastreie num contexto democrático de legitimação;

[j] as críticas atuais usando a “Teoria da Katchanga” limitam a crítica à “ponderação à brasileira” de forma superficial como uma crítica à utilização da teoria dos princípios no Brasil – por exemplo, o uso indevido do princípio da proporcionalidade para fundamentar uma escolha arbitrária;

[k] a crítica falha ao não perceber que “a ponderação à brasileira” é a Katchanga, porque isso não é uma peculiaridade daquela, mas sim presente “na própria teoria de Alexy e no elemento decisionista inerente ao seu procedimento ou fórmula da ponderação”;

[l] quem critica a Katchanga na ponderação tem que criticar também o livre convencimento do juiz, o instrumentalismo no processo civil, o sistema inquisitivo no processo penal e outros.


Nada tenho a opor quanto aos itens [a] até [g] e [i].

As demais, porém, penso que podem ser reformuladas.

Com relação à tese [h], esclareça-se, de início, que ela não é um juízo de fato, mas sim um juízo de valor, isto é, segundo Lenio, na visão dele, todo e qualquer decisionismo tem que ser extirpado. Em outras palavras, é uma escolha dele querer que toda a discricionariedade ou liberdade de julgar sejam excluídas e que a decisão judicial não seja um ato de vontade.

A questão que resta é: isso é possível ? Será que a escolha entre possíveis interpretações não envolve um certo grau de liberdade ? Poderia um sistema ser tão perfeito que eliminasse toda e qualquer escolha valorativa numa decisão judicial ? Se isso fosse possível, o elemento humano não seria perdido e trocado por um computador ? O Direito contenta-se com respostas totalmente previstas num sistema fechado racional ? O Juiz voltaria a ser apenas a "boca da lei" ? Não há espaço para Emoção a partir dos Valores, como a Justiça ? [para abordar a questão da necessidade de estudar Justiça, clique aqui; para um início sobre este conceito de justiça clique aqui e aqui também]

A reformulação que proponho ao item [h] é que a tarefa constitucional – que já era a tarefa do Estado Legalista – é a de limitar ou restringir a um certo limite razoável a esfera de escolhas possíveis.

Existe, sempre, uma certa discricionariedade em qualquer ato administrativo, inclusive nos atos políticos dos juízes (sim, política no sentido de definir ações do Estado, seja no plano geral e abstrato da lei, seja no plano particular e concretizado num processo). A discricionariedade possível aqui é aquela que Pontes de Miranda uma vez escreveu como a diferença entre o ato administrativo vinculado e o ato discricionário, em que ambos seriam como peixes dentro de um aquário, no qual o peixe pode ir para cima, baixo, direita ou esquerda, mas sempre dentro dos limites, variando apenas o tamanho deste aquário – infelizmente, li este exemplo há muitos anos atrás numa biblioteca durante um intervalo de aula e nunca mais achei a referência bibliográfica desta passagem magistral. O tema da discricionariedade judicial é interessante, e parece-me correta a abordagem dada por Dworkin, diferindo uma discricionariedade forte de uma fraca (fica para um post futuro).

Quanto a [j] e [k], creio que Lenio está equivocado, pois a crítica – especialmente a que fiz neste blog e em escritos de cunho mais formal e acadêmico – são não apenas à ponderação à brasileira (que merece crítica), mas também ao fenômeno jurídico como um todo, incluindo, aqui, o neoconstitucionalismo fundado na normatividade dos princípios.

Com relação a [l], a reformulação que acredito correta é a mesma feita ao item [h], isto é, creio [1] não ser possível reduzir e eliminar toda discricionariedade do ato judicial (como seria impossível eliminar o sentido de valor de qualquer ato humano) e [2] ainda que fosse possível, tal eliminação não seria desejável (conveniente e oportuna), pois o Direito não é apenas Razão, mas também Emoção, ligada, aqui, ao valor Justiça, por exemplo.

Porém, além das objeções [1] e [2] acima, penso que há outro problema ainda maior: [3] o de que não é oferecida uma visão alternativa e prática (aqui no sentido de que possa ser usada tanto pelo juiz no caso concreto para resolver um processo dizendo quem perdeu ou ganhou a ação, quanto no plano teórico dos que estudarão o fenômeno jurídico para avaliar como correta ou incorreta a decisão tomada ou a norma criada).

A tese que defendi em alguns trabalhos é, em resumo, a de que o neoconstitucionalismo ainda é insuficiente para lidar com o fenômeno jurídico, embora seja mais adequado do que o modelo positivista legalista clássico; por isso, o modelo pós-positivista pode e deve ser aprimorado.  

Isso porque ele padeceria das seguintes objeções que levantei e que agora resumo (e muito) a partir dos textos publicados, cujos originais, com a fundamentação teórica e citações bibliográficas pertinentes podem ser encontrados em “Desatando os nós do neoconstitucionalismo brasileiro”, parte do livro HIROSE, Tadaaqui; GEBRAN NETO, João Pedro.. (Org.). Curso Modular de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito Editorial, 2010, v. , p. 111-162; ou, a versão anterior, publicada em Sequência (UFSC), v. 58, p. 185-232, 2009, revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC (agora disponível na Internet neste link).

São estas as objeções:

[4] a base filosófica habermasiana do discurso ideal parte de uma igualdade formal entre iguais que [4.1] não se reproduz no mundo real, repleto de desigualdades materiais, e [4.2] parte dos pressupostos de que as partes querem se comunicar e chegar a um acordo final, inexistentes no mundo real em que há [4.2.1] conflitos de interesses que levam ao uso estratégico dos argumentos, bem como [4.2.2] requer a intervenção de um terceiro – Estado-juiz – para encerrar, em algum momento, a discussão;

[5] ao fazer um corte epistemológico para estudar apenas “o que foi dito pelo juiz ou pelas partes”, o neoconstitucionalismo oculta os fatores políticos, psicológicos e morais subjacentes, que, embora difíceis de serem apurados, são elementos importantes para entender o fenômeno jurídico; afinal, se a teoria jurídica quiser apenas descrever, ela não pode deixar de apontar os motivos que levaram à decisão, sob pena de ficar superficial e restrita àquilo que o sujeito decidir apontar como relevante; se a finalidade for prescritiva, ela também não pode desconsiderar as razões que ao julgamento, sob pena de muito pouco poder sugerir ou determinar como alternativa de solução; por fim, se ela for crítica, então muito mais necessária se faz a explicitação das condições escondidas, sob pena de se tornar inútil por apontar falhas naquilo que é aparente e não naquilo que é o determinante;

[6] a alienação intelectual dos juristas, que acabam esquecendo que as normas são produtos do homem e do contexto político e social de sua criação, e não algo inscrito em tábua de pedra por algum ser distante e que deve ser venerada como algo imutável ou divino;

[7] a existência de um elemento subjetivo valorativo que não pode ser excluído de qualquer juízo de ponderação, ainda que este aparente ser objetivo; afinal, dizer que o manifestante em greve de fome deve ser alimentado após cair inconsciente é dizer que o bem vida tem mais valor do que a vontade daquele e do seu direito de resistência e/ou livre expressão (não se quer, por óbvio, dizer que ela tem, ou não, mais valor, mas sim afirmar que isso é admitir que o juiz ou intérprete decidirá conforme determinados valores e que é impossível excluir estas escolhas valorativas de todas as decisões judiciais);

[8] as práticas jurídicas que eram da dogmática jurídica clássica continuam a assombrar o neoconstitucionalismo brasileiro, como [8.1] a ausência de metacritérios, que permite escolher o método de interpretação ou o princípio mais adequado a justificar a escolha previamente feita; [8.2] o uso de expressões ambíguas como “dignidade da pessoa humana” ou “princípio republicano” como forma de obter a adesão do leitor; [8.3] a adoção em “fatias” da doutrina dos princípios de Dworkin etc.

[9] a necessidade de reconhecer a interdependência entre Direito e Política, conceituando o Direito como uma prática moral e política de resolução de conflitos que nas sociedades ocidentais contemporâneas se dá mediante argumentação;

[10] o fato de que o Direito reproduz tanto as relações de poder internas às instituições envolvidas na prática jurídica quanto as existentes na Sociedade, que devem ser examinadas não apenas pelo prisma da técnica jurídica, mas também pelos demais saberes sociais como Antropologia, Sociologia etc.

Por isso, tendo em vista estas considerações, propus, dentro das minhas limitações intelectuais, que o modelo insuficiente do neoconstitucionalismo fosse trocado ou aprimorado por outro que analise o fenômeno jurídico a partir de uma extensão do sistema proposto por Atienza, com a inclusão de uma quarta camada referente ao Poder.

Na obra “El derecho como argumentación”, Atienza elabora uma Teoria argumentativa do Direito, estruturando-a a partir de três planos (formal, material e o pragmático), aparentemente influenciado pela Filosofia da Linguagem e seus três campos (Sintaxe, Semântica e Pragmática). [remeto o leitor à obra dele, ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Ariel: Barcelona, 2006], fornecendo instrumental teórico para análise mais aprofundada do Jurídico.



Comparativo das Concepções de Atienza
[ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación, p. 80-94/286]
Concepção
Formal
Concepção
Material
Concepção
Pragmática
ObjetoRegras lógicas para inferências a partir das premissas dadasConteúdo das premissasA aceitação das premissas
ÊnfaseLógica dedutiva (esquema formal que permite justificar os passos tomados a partir das premissas para chegar à conclusão)Métodos que permitam verificar a verdade ou correção das premissas fáticas ou a justificação de razões apresentadas[1] A Dialética (esquemas procedimentais que regem o debate); e
[2] Retórica (regras que permitem convencer)
Contribuição[1] esquemas e formas de argumentação que ajudam a organizar os argumentos;
[2] contextualização dos argumentos por fornecerem uma linguagem formal que traduz a linguagem natural; e
[3] critérios para controle dos argumentos
[1] aferição das razões apresentadas no contexto das práticas discursivas (Ética, Política e Direito)[1] Visualização da estrutura (como os argumentos parciais se relacionam entre si e com a conclusão);
[2] Visualização do fluxo dos seus atos de fala (afirmações, suposições, perguntas e outros);
 [3] Visualização dos elementos retóricos (porque utilizar um argumento e não outro)

A partir deste modelo, penso que seria possível a criação de uma quarta camada ou concepção, na qual os enunciados são investigados a partir da sua relação com o Poder, usando métodos de outras ciências (Economia, Ciência Política, Sociologia, Antropologia) ou saberes (Filosofia e Teorias da Justiça), incorporando conteúdos de natureza moral e política para que possa fornecer critérios de correção ou escolha da decisão.

Ou seja, é necessário incluir teorias da obrigação política, eqüidade, discricionariedade e razoabilidade, dentre outros, pois a racionalidade prática, por si só, não consegue indicar qual delas é a mais correta, mas apenas que elas são racionalmente adequadas.

Enfim, há mais convergências do que divergências no tema da Katchanga e neste diálogo intelectual espera-se que surjam propostas teóricas e práticas de aprimoramento da vida jurídica para adequá-la ao ideal de legitimidade democrática e fugir daquilo que o filósofo e jurista nicaragüense Alejandro Caldera diz ser comum na América Latina: dizer o que não se faz e fazer o que não se diz. A perspectiva jurídica não consegue, por si só, produzir soluções práticas, especialmente quando passa a focar a Constituição e a prática jurídica como objetos alienados do seus partícipes, ignorando o jogo de poder que lhes constrói e que direciona a aplicação cotidiana. O estudo do Direito deve explicitar aquilo que não foi dito e examiná-lo, sob pena de, não o fazendo, esconder a arbitrariedade, agora sob o nome de “normatividade dos princípios”.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Noções de Direito Tributário para não-juristas.


1. Introdução.

Um dos assuntos que periodicamente voltam à discussão na mídia é a chamada “Reforma Tributária”. Os impostos (em sentido amplo) atingem toda a população. A escolha sobre a forma de tributar define várias circunstâncias da vida econômica das Nações. Porém, tirando os juristas (em especial os tributaristas) e parcela dos economistas e governantes, poucos têm a exata noção de o que significa Sistema Tributário ou como se estruturam, constitucionalmente, os diversos tipos de tributos e nem a diferença entre Imposto, Taxa, Empréstimo Compulsório, CIDE, Contribuição Previdenciária e outros.

O presente texto é destinado ao leigo em Direito (ou ao iniciante), e não o Jurista. A intenção é justamente explicar, sem usar o “juridiquês”, tanto quanto possível, as noções elementares do Direito Tributário para os médicos, dentistas, engenheiros, administradores e outros a fim de que, cada vez mais, participem do processo de discussão democrático.

2. Conceito de Direito Tributário.

A primeira noção necessária é justamente o conceito de Direito tributário. Ele é o ramo do Direito que regula a atividade financeira do Estado (em sentido amplo, abrangendo os governos Federal, Estadual e Municipal) ligada as normas que instituem, arrecadam e fiscalizam tributos.

3. Quem pode tributar ? Como ele pode criar um Tributo ?


O Estado, no exercício de sua soberania, tributa para suprir seus gastos. Todavia, a tributação não é simples relação de poder, mas sim uma relação jurídica, submetida às normas. Isso porque, embora nas monarquias absolutistas fosse possível ao Rei exigir tributos conforme a sua própria vontade, o advento das restrições ao poder, tais como a “Magna Charta” de 1215 (que antecedeu as modernas Constituições), transformou o “governo dos homens” em “governo das leis”. É importante notar que um dos fatores que implicou a revolta dos nobres feudais contra o rei inglês, e consequentemente a imposição da “Magna Charta”, foi justamente a revolta contra a tributação desmedida e sem critérios.

Como os governantes não têm mais poderes ilimitados, mas somente aqueles previstos pela Constituição e pelas Leis do país, só é possível cobrar tributos que estejam previstos no ordenamento.

O sistema brasileiro prevê duas etapas distintas: na primeira, a Constituição autoriza as esferas Federal, Estadual e Municipal a, querendo, instituir tributos por meio de leis (art. 150, III), que devem observar, logicamente, a Constituição. Esta, por sua vez, estabelece diversas regras, tais como a que proíbe a União de tributar a renda dos demais entes da Federação (art. 151, II) ou a que proíbe cobrar impostos sobre os templos de qualquer culto (art. 150, VI, “b”). Para evitar que um mesmo ente tribute o mesmo fato, a Constituição enumera quais Tributos podem ser criados para cada um dos níveis da Federação. Assim, a União (ente Federal) não pode cobrar imposto sobre a propriedade urbana (IPTU), pois este é reservado para os Municípios (art. 156, I). 

Um tipo especial de regras constitucionais é a Imunidade tributária, que, atendendo a algum tipo de valor social ou político, suprime do Estado o poder de tributar determinados bens ou pessoas. É uma espécie de “competência negativa” estabelecida pela Constituição, tornando intocáveis objetos ou sujeitos para ampliar a liberdade em face do Estado. Assim é que, por exemplo, para proteger a liberdade de expressão e divulgação de idéias, a Constituição prevê que são imunes os livros, jornais, periódicos e papel destinado à impressão (art. 150, VI, “d”). Ou para proteger a liberdade de crença, a Constituição protege os templos de qualquer culto têm imunidade de impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços ligados à sua finalidade (art. 150, VI, “b”, e §4º).  

Além disso, para tentar uniformizar o sistema nacional e evitar confusões entre os vários entes, as leis federais, estaduais ou municipais que regulamentam os tributos criados também devem observar as regras definidas em Lei Complementar (art. 149), no caso, Código Tributário Nacional (CTN). Por exemplo, a União não dizer que um imóvel no centro de uma cidade é rural para tributá-lo, pois, embora a Constituição autorize criar um Imposto sobre Propriedades Rurais (art. 153, VI), o CTN define o quê é propriedade urbana (art. 32, §1º, CTN) e impede que ela seja usada como fato para aquele tributo federal (art. 29, CTN). Assim, a lei que organiza um determinado imposto ou taxa não pode chamar de redondo aquilo que é quadrado, e vice-versa (para o tema, vide meu post anterior sobre os "círculos quadrados".).


4. Conceito de Tributo.

Tudo isso leva a um segundo conceito: Tributo. O CTN traz uma definição interessante (o que não é normal de ocorrer nas leis, que, por técnica legislativa, deixam os conceitos para a Doutrina): “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (art. 3º, CTN).

Trocando em miúdos: Tributo é todo pagamento exigido pelo Estado que não decorre de um acordo voluntário (como um contrato administrativo) e nem de uma punição (multa por infração à lei penal, por exemplo).

Na prática isso significa que, a partir das autorizações previstas na Constituição, o legislador pode examinar os fatos do dia a dia e, sobre um determinado fenômeno econômico, elaborar uma lei para exigir uma parcela daquele fato econômico para o Estado, a título de Tributo.

5. Tipos de tributos.

Estes Tributos podem ser agrupados de várias formas. Há, na literatura, diversas classificações. O CTN prevê uma, classificando-os em impostos, taxas e contribuições de melhoria (art. 5º, CTN), mas, como ele é de 1966 e inferior hierarquicamente à Constituição de 1988, há várias espécies de Tributos com regimes jurídicos diferentes destes (por regime jurídico entenda-se o conjunto de regras e princípios que definem a vida e a morte dos direitos e deveres ligados àquele tributo).

Uma das classificações mais completas arrola: (a) Impostos, (a.1) Nominados, (a.2) Residuais (art. 154, I) e (a.3) Extraordinários de guerra; (b) Taxas, do (b.1) poder de polícia, (b.2) serviços públicos específicos e divisíveis e de (b.3) uso de via conservada pelo poder público; (c) Contribuições de melhoria; (d) Contribuições Especiais; que podem ser (d.1) Sociais, (d.1.1) gerais (art. 149, 1ª parte), da (d.1.2) Seguridade Social (art. 195, I, II e III) e (d.1.3) Seguridade Social residuais (art. 195, §4º) ou (d.1.4) Previdência e Assistência dos servidores públicos; além das contribuições (d.2) intervenção no domínio econômico, de (d.3) interesse das categorias profissionais ou de (d.4) custeio de serviço de iluminação pública; e, ainda, os (e) empréstimos compulsórios (e.1) extraordinários de calamidade ou guerra; e os de (e.2) investimento.

De qualquer forma, há diversas regras constitucionais e legais que organizam estes tributos, tais como a que proíbe a cobrança de taxa sobre a mesma base de cálculo de um imposto (art. 145, §2º, Constituição), por exemplo. 

6. “Fato Gerador”, “Obrigação Tributária” e “Hipótese de Incidência”.

É impossível tratar de todos eles, com todas as suas nuances, neste breve espaço, mas os três mais comuns (Impostos, Taxas e Contribuições Sociais) podem ser resumidos a partir de um conceito único, fundamental e importantíssimo para o Direito Tributário: o “Fato Gerador”.

Diz o CTN que o fato gerador do pagamento de tributos (obrigação principal) é “a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência” (art. 114, do CTN).  Em outras palavras, a lei deverá descrever claramente qual a situação econômica que gera o dever de pagar: o Fato Gerador.

Porém, apenas isso não é suficiente. É necessário que a lei que cria um tributo defina todos os aspectos do fato econômico que determinam o pagamento, ou seja, quem deve pagar, a quem pagar, qual o motivo (situação fática que gera o dever de pagar), quanto deve pagar etc. Um dos elementos importantes é justamente a “Base de Cálculo”, que é  a valoração (medida) numérica que representa a expressão econômica do fato gerador e que deve ser um elemento que tenha relação íntima com aquele, sob pena de se desnaturar o tributo. Na terminologia jurídica, este conjunto de atributos é chamado de “Hipótese de Incidência”, isto é, a descrição daquela situação que, na hipótese de ocorrer, fará a lei tributária incidir para nascer uma obrigação tributária. Esta obrigação pode ser a principal (pagar) ou acessória (manter os livros fiscais em dia, por exemplo) – artigos 114 e 115 do CTN.

7. Impostos, Taxas e Contribuições Sociais.


Os exemplos de tributos e regras são vários e não seria possível condensá-los num texto curto e destinado aos não juristas, mas voltando à questão da classificação dos tributos, a grande divisão que existe é entre os que tem o fato gerador vinculado a alguma ação do Estado em relação ao contribuinte e aqueles que não tem esta vinculação.

Quando o Tributo decorre de uma situação independente de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte, temos o Imposto (art. 16, CTN), ou seja, o fato gerador do imposto não tem nada a ver com algum serviço ou ação do Governo em relação ao contribuinte, como, por exemplo, no Imposto de Renda, que decorre, dentre outros, do simples fato de a pessoa que trabalhou ou obteve rendimento ter, com isso, aumentado a sua disponibilidade econômica (art. 43, I, CTN).

Isso significa que o todo o volume de recursos arrecadado com os impostos ingressa no orçamento público para custear os serviços gerais do Estado independente de qualquer ligação com aquelas atividades tributadas.

Por isso, ao contrário do que pensa “o senso comum”, é irrelevante que seja mal prestado um serviço público ligado, ainda que indiretamente, ao fato econômico gerador do imposto. Por exemplo: o fato de pagar o IPVA pela propriedade de um automóvel não garante nenhum retorno nas estradas que serão usadas com aquele, pois a renda deste Imposto entra no caixa geral do Estado e pode ir para outro destino, como o pagamento de salários dos professores da rede pública.

Por outro lado, as Taxas são o pagamento devido pelo contribuinte por conta de serviços públicos prestados (ou postos à disposição) ou por conta do poder de polícia (art. 145, II, Constituição). Porém, aqui, quando se fala em poder de polícia, não se está referindo à Polícia Civil ou Militar (sentido leigo da palavra), mas sim o poder de polícia em sentido jurídico, ou seja, “atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos” (art. 78, CTN).  Ou seja, no caso das Taxas, ou ela é cobrada por algum serviço específico posto à disposição do contribuinte, ou ele decorre de algum tipo de fiscalização do Estado sobre uma atividade.

Um terceiro tributo importante cuja participação na arrecadação tem aumentado ano a ano é Contribuição Especial. As contribuições especiais são tributos com finalidade constitucionalmente definida, como, por exemplo, a manutenção de um sistema de previdência social pública. Há autores que chamam de contribuições especiais e há quem chame de contribuições sociais, mas o importante é que elas diferem dos impostos e das taxas justamente pela destinação específica, embora tenham, ao mesmo tempo, similaridades com os impostos e as taxas.

As contribuições especiais podem ser subdivididas conforme a natureza da sua finalidade em [a] Contribuições sociais gerais (como as do Sistema “S” – SESI, SENAI, SESC – e o Salário-educação); [b] Contribuições para a seguridade social (exemplo: Contribuição sobre Folha de salários; FINSOCIAL; COFINS; CSLL); [c] Contribuições para intervenção no domínio econômico; e [d] Contribuições no interesse de categoria profissional (Ex: as devidas para órgãos de conselhos de fiscalização e a contribuição sindical prevista no art. 8º, IV, 2ª parte, da Constituição, com art. 578, da CLT).

O interessante destas Contribuições é que elas tem um regime misto entre as taxas e os impostos, pois, se de um lado os seus fatos geradores muitas vezes não guardem ligação com uma atividade específica (uma empresa, que recolhe contribuição sobre o lucro para o sistema de Previdência não irá se aposentar, por óbvio), de outro, a sua destinação final está ligada a algum tipo de serviço específico.

Além disso, o crescimento exponencial da importância destas contribuições no bolo geral de arrecadação pode ser explicado por vários fatores, dentre eles o fato de a Constituição prever a possibilidade de cobrança de Contribuições sobre um grande número de fatos econômicos, inclusive os que já são tributados pelos impostos, e o entendimento jurisprudencial que o desvio da verba para outra destinação é questão administrativa-orçamentária que não afeta a validade da contribuição arrecadada.


8. Como podem tributar ?


Não adianta toda essa estrutura jurídica para definir e limitar os tributos se não houver um procedimento para exigi-los, uma vez que não é racional esperar que todos paguem espontaneamente – e, mesmo se os contribuintes quisessem pagar, teriam que saber qual o valor devido.

E mais: como o Tributo envolve uma atividade do Estado, este não pode fazer nada que não estiver estritamente previsto para que ele faça, sob pena de configurar o chamado “desvio” ou “excesso de poder”.

Ocorrido o fato que gera o dever de pagar – por exemplo: adquirir renda –, nasce a chamada “obrigação tributária”, que nada mais é do que a relação jurídica de direito público entre o sujeito que pode cobrar (Estado) e o sujeito que deve pagar.

Porém, embora já exista a relação, ela não é líquida e nem exigível, sendo necessário que o Estado realize um procedimento chamado “lançamento tributário” para calcular o valor devido e informar quando, quem e como pagá-lo. O CTN define o Lançamento como “procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível” (art. 142, CTN).

Conforme a participação do contribuinte no ato, existem várias formas de realizar o lançamento: [1] o direto ou “de ofício”, no qual a autoridade realiza todos os atos; [2] Misto ou por declaração, em que particular declara certas informações para a autoridade administrativa e esta, num segundo momento, completa e efetua o lançamento (art. 147, CTN); e, por fim, o [3] auto-lançamento ou “lançamento por homologação”, cada vez mais comum, no qual o sujeito passivo declara, calcula e efetua o pagamento do valor devido e, depois, a Fazenda homologa o procedimento -  expressa ou tacitamente pelo decurso do prazo – (art. 150, CTN). Nesta última modalidade podem ser incluídas as várias formas de prestação de informações com pagamento conjunto, tais como a GFIP (Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social) e a DCTF (Declaração de Contribuição de Tributos Federais).

Com o encerramento do procedimento administrativo – que deve prever alguma etapa de abertura de defesa para o cidadão –, a “obrigação” vira “crédito”. Se não for pago no prazo, ele é remetido para o setor jurídico para a cobrança judicial (inscrito em Dívida Ativa) e é ajuizada a ação de “Execução Fiscal” [para uma explicação lógica, filosófica e jurídica da necessidade e legitimidade de coerção para exigir o cumprimento das regras, vide o post sobre o dilema da honestidade irracional].

9. Considerações finais.


Conhecimento é poder e como poucos leigos conhecem de fato as noções tributárias, é necessário transmitir estas informações de forma clara e acessível para que, se quiserem, possam pressionar quem decide estas questões no legislativo.

Só assim, por exemplo, o cidadão poderá saber que um governante está mentindo quando diz esperar uma "Reforma Tributária" com algeração constitucional para desonerar a folha de salários, pois, entendendo que a Constituição apenas autoriza, mas não manda tributar, poderá compreender que basta uma Medida Provisória revogar a Contribuição Previdenciária, sendo desnecessária qualquer Emenda Constitucional. [Esta "Reforma Tributária salvadora" é uma falácia, no seu conceito lógico-formal. Para o tema, confira-se o meu post anterior sobre a possibilidade de mentir falando a verdade - ou meias-verdades]

Deixar de atuar politicamente por falta de conhecimento não é culpa de ninguém, mas deixar de agir por desinteresse, sim.

Logo, a compreensão do fenômeno tributário não pode partir apenas do ponto de vista jurídico e nem do econômico, mas sim, e principalmente, das relações de poder que permeiam a Sociedade e, às vezes, implicam desconhecimento sobre as leis ou favorecimento de grupos mais mobilizados a fim de receberem benefícios fiscais (como as Imunidades). 

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OBS.: Este texto ficou meio grande. Estava em "gestação" há algum tempo, pois sempre tive a vontade de tentar explicar os vários ramos do Direito em linguagem não jurídica, tanto quanto possível, ligando a regulamentação da lei com o fenômeno social, político e econômico que ele buscou tratar. Não sei se o texto conseguiu atingir alguma parte deste objetivo, mas não é apenas o resultado que conta.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Poder ou dever de desagradar ?


A recente e acalorada discussão sobre a decisão do STF acerca dos “poderes” do CNJ tinha uma questão de fundo que foi pouco debatida. Não se trata de examinar o mérito da decisão do STF, mas é interessante notar que, ao elogiar o “placar final”, a imprensa e a Sociedade tratavam o tema como se houvesse a necessidade da Corte decidir de acordo com uma suposta vontade pública e deixaram de questionar se cabe ao Judiciário e, mais especificamente, ao STF, atender o “clamor popular” ? Ele pode desagradar o público ? Suas decisões tem que ser baseadas na popularidade ou no Direito ? Há espaço para um Direito “impopular” ? A legitimidade do STF funda-se na aceitação do povo ?

Ao tratar do tema, os poucos que conseguem refletir de forma não passional costumam citar os clássicos exemplos de decisões equivocadas baseadas no clamor social, como a de Pôncio Pilatos que, premido pela multidão, lavou as mãos, soltou Barrabás e condenou Cristo. Ou, ainda, na realidade brasileira em tempos mais próximos, os famosos casos da “Escola Base” e do “Escândalo das Bicicletas do Ministro Alceni Guerra”, que foram condenados pela imprensa, linchados moralmente, e, depois, absolvidos pela clareza das provas que indicavam suas inocências.

A questão é mais profunda e vai além da possibilidade de erro no julgamento popular ou midiático que gera o dever de resguardar os acusados até o final do processo mesmo contra a pressão pública.

Existe, sim, um poder, quase dever, do Judiciário de não se preocupar com o clamor social, e, se for o caso, desagradar a quem for para fazer cumprir sua função: decidir os conflitos que não foram solucionados pelos envolvidos.

A análise pode ser feita sob dois planos: o dos processos/ações individuais (com a conotação mais jurídica do conflito) e o dos processos coletivos (com um lado político mais acentuado – sobre o tema da Política confira-se post anterior questionando se o STF é ou não um Tribunal Político. ).

Nos processos comuns, ninguém vai ao Judiciário por livre e espontânea vontade. Autor e réu não vão ao Juiz para tomar um cafezinho, contar piada e dizer como suas vidas são perfeitas.

Ao contrário, o dia a dia forense é marcado pelo conflito de interesses, pela briga entre vizinhos, pelos relacionamentos amorosos desfeitos num Divórcio, pelo ressentimento do empregado e do patrão que entendem, cada um, que o outro quer lucrar às suas custas, etc.

Nestes casos, se não for possível a Conciliação, o Juiz terá que decidir. Terá que desagradar uma das partes. Aquele que vencer, dirá que seu Advogado foi bom e que o juiz só reconheceu a sua razão. O que perder, dirá que o Juiz errou e, se estiver convencido de que tem razão, lançará dúvida sobre a capacidade e idoneidade do magistrado, não admitindo que seu direito não era concreto.


Nestas questões, qualquer que seja a decisão final do Judiciário, ela desagradará alguém. Pode ser um jornalista que teve sua matéria censurada por conta de algum direito individual à honra (ou o seu adversário: alguém que buscou restringir a divulgação de fato de sua intimidade que não teve este direito reconhecido). Pode ser um candidato eleito que teve sua posse suspensa por conta de algum ato de improbidade (ou pode ser seu adversário que julgava corrupto o eleito e não conseguiu evitar a posse). Pode ser o policial que usou meios não usuais para provar a tentativa de corrupção de um empresário e teve a prova indeferida (ou pode ser o banqueiro que se julga perseguido e entende que o juiz está mancomunado com os policiais ao deferir a prova). Enfim, toda questão tem dois lados colidentes e raramente será possível agradar a todos.


Esta vulnerabilidade é ainda maior nos processos criminais, especialmente quando envolvem crimes de colarinho branco  (daqueles que têm condições financeiras inclusive de promover a perseguição individual contra os juízes, promotores e policiais) e do crime organizado (o homicídio da juíza carioca é um caso evidente).

Isso não significa que os juízes não erram. Claro que erram. Faz parte da condição humana errar. Para isso, existem os recursos (aliás, no Brasil, existem recursos até demais, ao contrário do que ocorre em todos os outros países). Os tribunais de segunda instância, os superiores e ao final o STF irão confirmar ou não a decisão do primeiro juiz.

Porém, uma decisão terá de ser dada e em algum momento ela terá de ser final. Doa a quem doer.

Nos processos coletivos a questão é ainda mais profunda.

O Brasil é uma Sociedade desigual. Existem conflitos políticos, sociais e econômicos coletivos que não são resolvidos sem dor, sem desagradar e muito menos facilmente.

O Legislativo e o Executivo já perceberam isso há muito tempo.

Um dos exemplos mais claros disso é relatado no caso da Constituinte e do Descanso Semanal Remunerado. O congresso era dividido em dois grupos distintos e de igual tamanho: o “centrão” e as “esquerdas”, estes queriam o descanso obrigatoriamente aos domingos, aqueles, não. Ninguém cedia. Em determinado momento o conflito foi resolvido dizendo-se que o descanso semanal seria “preferencialmente” aos Domingos.

O resultado ? Coube ao Judiciário resolver o conflito em inúmeras ações trabalhistas, incluindo dissídios coletivos e, nos casos mais extremados e passionais, em interditos possessórios deflagrados em razão de greves. Nestes casos, alguém sempre ficou desagradado, e não foi pelo Legislativo, mas pelo Judiciário.

A questão ambiental também indica isso. Há décadas que os Poderes Executivos Federal, Estadual e Municipal podem demolir construções irregulares localizadas em áreas de proteção ou feitas em desacordo com a legislação urbanística. Não o fazem.

Se existirem estatísticas sobre o tema, com certeza apontarão que o número de ações de demolição ou desocupação é milhares de vezes superior ao número de procedimentos administrativos decorrentes de ação dos governos ou suas autarquias.

Curiosamente, acaba “sobrando” para o Judiciário dar as ordens, provocado, em regra, pelo Ministério Público, órgãos cuja legitimidade não decorre do voto.

Nos anos recentes, o STF tem sido instado a definir as questões políticas e morais mais importantes e polêmicas: união homoafetiva, lei de imprensa, a forma de regulamentação das reservas indígenas, a possibilidade de pesquisa com células embrionárias, a fidelidade partidária, a extensão do direito à saúde e o fornecimento de medicamentos, a lei da "ficha limpa", as cotas raciais etc.

Isso porque a dinâmica do Estado de Bem Estar Social e, mais especificamente no Brasil, o Estado democrático de Direito desenhado pela Constituição de 1988, com diversas promessas e objetivos dirigentes, produziu uma crescente judicialização da política e das relações sociais, trazendo, cada vez mais, ao Judiciário, a atribuição de decidir questões polêmicas de difícil solução harmônica.

Além disso, há aspectos do Direito Constitucional que são feitos justamente para serem opostos contra a maioria: os direitos fundamentais e as cláusulas pétreas. A história demonstrou o perigo de maiorias temporárias, especialmente quando conduzidas por discursos fundamentalistas, moralistas ou de medo (veja-se os casos da Alemanha Nazista, a ditadura Brasileira pós AI-5, e, mais recentemente, a Era Bush nos E.U.A., que, no auge, chegaram a renomear as batatas-fritas para trocar o "french fries" por "freedom fries", elegendo a tortura como meio de investigação). Para uma análise mais aprofundada sobre estes, recomendo os excelentes posts do George Marmelstein sobre democracia e cláusulas pétreas e o sobre a distinção entre a adesão política e adesão ética aos direitos fundamentais.

E, ainda no plano do Direito Constitucional, o Poder Judiciário irá chocar-se contra os demais poderes continuamente. É esta a base do sistema de tripartição de poderes: cada poder fiscaliza e controla os demais. Para evitar um absolutismo - de qualquer um dos poderes - há a vigilância recíproca. A previsão de que os poderes são harmônicos entre si (art. 2o, da Constituição) é, na prática, traduzida por um choque de vontades. Quando o Executivo quer ir além do que manda a lei determinada pelo Legislativo, alguém do Judiciário terá que dizer não, avisando: "você passou do limite". Se de um lado o Executivo indica os membros do STF, que serão sabatinados pelo Legislativo, é este mesmo STF quem irá, posteriormente, dar os limites àqueles. E, como é próprio da natureza humana, ninguém gosta de ser contrariado, de não poder fazer uma obra ou uma licitação além do que lei determina. Este controle desagrada a quem está no poder, mas este choque é necessário num Estado de Direito. O governante não tem mais os poderes absolutos que os reis tinham, mas muitas vezes esquecem-se disso e precisam ser lembrados. Esta lembrança nem sempre é agradável.

Tudo isso é inevitável e faz parte do sistema político de qualquer nação democrática atual.

Há, ainda, outro plano de análise: a tradução das decisões e do papel do Judiciário às partes e à Sociedade, tanto na esfera do seu “marketing”, quanto no caso individualmente decidido.

Os juízes tem a tradição histórica de não se expor. De não divulgar suas idéias. De não dar caráter midiático às suas decisões. As causas são várias e vão desde a vedação legal de emitir opinião sobre processos em andamento (art. 36, III, da LOMAN) até a necessidade de demonstrar imparcialidade (ou neutralidade) diante dos processos que lhe são trazidos. Tudo isso leva a um perfil institucional de evitar a auto-exposição das Cortes e de seus Membros.

Por outro lado, o Judiciário tem restrições orçamentárias de gasto com publicidade que outros órgãos, inseridos no Executivo e no Legislativo, não tem. Assim é que, por exemplo, outros órgãos buscam a publicidade, com certeza auto-elogiando-se, ao contrário do Judiciário. Veja-se: matéria sobre a "visibilidade" da AGU

No plano individual da tradução de seus atos e decisões, o Judiciário “peca” ao usar linguagem técnica e formal na sua comunicação com as partes [o termo “pecar” está entre aspas por uma singela razão: a decisão judicial faz parte de um sistema formal – o processo – e de uma linguagem técnica – a jurídica -, pois sua função não é promover a visão marqueteira do Juiz, e sim decidir um caso trazido. Portanto, ela cumpre uma função e descumpre outra].

A “tradução” da decisão para a imprensa ou para as partes envolvidas acaba sendo feita por um terceiro: o advogado. Este, por sua vez, é interessado direto na causa. Ainda que inconscientemente e sem a intenção, por ser interessado e por conta do ruído inerente a qualquer processo de comunicação, a tradução que ele fará não será totalmente fiel aos fatos. Eventuais falhas suas poderão ser omitidas à parte. Qualidades positivas poderão ser apontadas como resultado de seu trabalho, e não como qualidades do julgador. Isso também é natural e próprio do sistema jurídico de qualquer país do mundo, repita-se. Porém, também gera um desgaste na imagem do Juiz e do Judiciário que não é necessariamente real.

Por fim, uma última questão: se houvesse esta subordinação da legitimidade do STF à vontade popular, ela seria por um prazo ou dependeria de ser renovada a cada decisão ? Isto é: o uma decisão "agradável" há algum tempo (exemplo: questão da ficha limpa) seria anulada por uma decisão "desagradável" posterior ? Curiosamente, alguns colunistas e editoriais de periódicos davam como certa a "crise" ou o "fim da credibilidade" do STF se ele desse uma decisão contrária ao "anseio popular" no caso do CNJ. Isso significa que as decisões anteriores - supostamente afins com este mesmo "anseio popular" -, tais como a questão da liberdade de imprensa e não recepção da vetusta lei, seriam apagadas. A cada decisão, o STF teria sua legitimidade posta à prova ? É possível imaginar a sobrevida de uma instituição que necessariamente tem que desagradar interesses se a cada decisão ela fosse colocada à prova, esquecendo-se os méritos das anteriores ? E mais: os ministros sendo classificados como "vilões" ou "mocinhos", numa dicotomia preta e branca, por cada voto seu ?

Neste passo, a conclusão é que, quanto mais o Judiciário participar da vida da Sociedade e mais esta buscar nele a solução para problemas de alta litigiosidade, maior será o desgaste da instituição e maior será a crítica contra ele.

Buscar uma solução que agrade a gregos e troianos é algo impossível e desvirtuaria a missão e função principal do Juiz, que é, justamente, a de aplicar as regras do jogo, desenhadas pelos jogadores antes dos fatos, a fim de resolver, ainda que temporariamente, o conflito social trazido. A sua medida de avaliação não pode ser o atendimento à vontade popular (se é que é possível dizer qual é, de fato, a vontade popular), mas sim o atendimento às regras do jogo e o grau de eficiência na solução dos conflitos.

A legitimidade não pode ser, portanto, a popularidade do Judiciário. Por mais que isso possa ser impopular.